O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Vida conjugal

Virou rotina o casal do lado de cá espiar o casal do lado de lá tomando banho e transando debaixo do chuveiro - o vidro fosco do banheiro permite perfeitamente enxergar a silueta. Nem vinte metros separam os dois apartamentos, os dois casais. São duas torres. Uma de frente pra outra. Décimo-sétimo andar.

— Olha lá os pombinhos de novo, momô!

— Não agüento mais ver esses dois, meu bem. Vai fazer um ano que eles mudaram praí e é sempre a mesma coisa. E ela é bem mais alta do que ele.

— Não variam nem a posição. Esse baixinho é ninja!

— É...

Algum tempo depois, numa sexta-feira, bem tarde da noite, o marido de cá vê a mulher de lá passar correndo pela sala, saindo da cozinha em direção aos quartos, olhando as horas no relógio de pulso. O marido de lá a segue. Ela volta com a bolsa debaixo do braço, abre a porta de entrada do apartamento. Parece nervosa. O marido não a deixa sair.

— Momô! Momô! O bicho tá pegando no vizinho. Corre aqui!

— Precisa gritar? Tava quase dormindo...

— Olha os pombinhos!

O marido de lá segura a mulher pelos braços e a traz para dentro do apartamento. Chacoalha-a. Fala sério com ela, que parece não querer ouvir.

— Aí tem, momô! Pra mim, ela chifrou o tampinha. Ele tem todo o tipinho de corno, reparou?

— Não fala besteira! Crise de casamento. Finalmente!

— Reparou que faz o maior tempo que eles não tomam mais banhos juntos?

— É... E o que que tem uma coisa com outra? Quantas vezes nós tomamos banho juntos? Quantas? Tão em crise, oras. Natural. Mais dia menos dia isso ia acontecer. Aconteceu. Vamos dormir.

— Guenta um pouco, momô!

O marido de lá faz a mulher sentar-se no sofá. Como os vizinhos estão na mesma altura nos dois prédios, no mesmo andar, quem está do lado de cá não consegue visualizar o que acontece do lado de lá, abaixo do nível das janelas. O mesmo acontece em relação ao banheiro: só dá pra ver da cintura pra cima.

— Deve estar enchendo ela de porrada, momô!

A mulher de cá perde o sono de vez.

— Se ele encostar um dedo nessa moça eu denuncio ele pra delegacia da mulher, agora! Pra mim, homem que bate em mulher tem que ir pra cadeia. Covarde! É o fim do mundo!

A mulher de lá, levanta-se, descabelada, passa a mão ao lado da cabeça, como que dizendo não-me-enche-o-saco, e vai em direção aos quartos. O marido permanece fora de cena, isto é, sentado no sofá.

— Ela tá chorando, olha lá! Tomou uns cascudos, não falei? Acho que ela foi pegar uma arma, momô!

Magina!

— Apaga a luz da sala!

A mulher de lá acende a luz do banheiro e entra debaixo do chuveiro, sem mesmo testar a temperatura da água. Ela fica imóvel sob a ducha. Uns cinco minutos depois, com a jovem na mesma posição no banheiro, o marido ergue-se na sala e vai em direção aos quartos. Em seguida, uma outra pessoa levanta-se do sofá, vai até a da sala de jantar, deposita um copo na mesa e sai do apartamento.

— Não falei? Olha lá o Ricardão! Deviam estar discutindo a relação, só pode ser. Pouca vergonha esses casais jovens de hoje em dia. E o pivô da discórdia sentado no sofá, tomando vinho... Homénage à trois que fala, né, momô?

— Mas aquele é o nosso vizinho do 183! O professor de educação física. Bonitão...

Logo, o marido de lá aparece, nu, no banheiro.

— Só me faltava essa agora... Não vai dizer que ele... Esse baixinho é f...

— ...não fala besteira! Você acha que ela tá com cabeça pra isso? Nesse clima? A moça tá em prantos, coitada!

Os dois de lá conversam, gesticulam debaixo da ducha. Ele a abraça. Ela encosta a cabeça no ombro dele. Parece soluçar. Ele abaixa-se, desaparece do plano visual do casal de cá. Ela continua no chuveiro.

— Isso aí o ninja nunca fez. Pelo menos nas poucas vezes que eu vi...

— Para de pensar besteira!

A mulher de lá também se abaixa. Só fica a imagem do chuveiro ligado. O marido de cá vai para a cozinha.

— Cervejinha, momô?

— Já escovei os dentes. É a terceira latinha que o senhor abre hoje.

Quinze minutos. Outra cerveja. Meia-hora. Nada de o casal de lá se levantar. Vidro do banheiro embaçado.

— Se rolou alguma coisa, momô, foi no chão mesmo. Desperdício de água, isso sim.

O casal de lá continuou fora de cena até o de cá apagar as luzes e ir dormir. No dia seguinte, logo cedo, o mesmo cenário do lado de lá: luz da sala e do banheiro acesas, janelas abertas.

— O negócio foi demorado, momô! Devem estar dormindo até agora. Desligaram o chuveiro ou acabou a água.

— Coisa mais esquisita...

— Será que vazou gás no banheiro?

— Chuveiro elétrico, meu bem. Duchão. Se liga!

— Vou dar um toque na portaria.

— Você não faz nada! Não se mete! Daqui a pouco eles aparecem.

Na segunda-feira, apenas a empregada do lado de lá aparece. Trabalha normalmente. No início da noite, surge o marido. Vai direto pro banho. Nada da mulher. Nem no dia seguinte. Nem no outro. Nem nunca mais.

— Parece que deu merda mesmo lá com os pombinhos, momô! Separaram de vez.

— É... Coitada dessa moça...

— Coitado de mim! Aguentar esse anão tomando banho todas as noites é dose. Ninguém merece!

Duas semanas depois a mulher de lá aparece. Três malas, vários pacotes de presentes, caixa de vinho do free-shop. O marido a recebe de braços abertos. Abraçam-se calorosamente. Longos beijos na boca.

No dia seguinte, coincidentemente, o casal de cá entra no elevador com o vizinho do 183. Começam a conversar e descobrem que ele é primo da mulher do lado de lá, que ela foi viajar para o exterior, a trabalho, na madrugada de um sábado. E aquele entra-e-sai do apartamento, o banho demorado fora de hora, perguntam. É que ela havia confundido o horário do vôo, verificaram a passagem, resolveram tomar um banho quente na jacuzzi, pra relaxar. Fazer hora para saírem para o aeroporto. Ela estava emotiva ao extremo. Ia se separar do marido por uns dias, pela primeira vez, depois de um ano de casados...

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