O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Aula particular de violino

— É muito importante a presença dos pais nas aulas. Ajuda corrigir a postura das crianças.

O professor de violino faz questão. As primeiras aulas vão ser na casa do professor mesmo. Lá, segundo ele, tem uma vasta discoteca de música clássica, vídeos educativos, sem contar toda a mística de ser na casa do mestre. Muito mais produtivo, convence. Uma vez por semana.

Os pais concordam. Combinam como vai ser a ida das crianças – um menino e uma menina, ambos com 9 anos – para a aula particular de violino. No primeiro dia fica combinado que vão no carro da mãe da menina. Quem acompanha o menino é o pai. Marcam encontro para depois da escola. As crianças estudam no mesmo colégio, na mesma classe.

— Imprimi o mapa que o professor mandou, taí no porta-luvas – diz a mãe da menina, a motorista. — Indo por dentro, parece que não é complicado. Evitamos o trânsito de final de tarde das grandes avenidas, ainda mais de sexta, aquele estresse.

O pai do menino, tímido, e a mãe da menina, idem, mal se conhecem. Apenas trocavam cumprimentos com a cabeça, quando se encontravam nas reuniões de pais na escola.

Depois de se perderem várias vezes no trajeto alternativo para a casa do professor, com as crianças falando sem parar no banco de trás, cinquenta minutos de atraso, chegam ao local da aula.

— Sexto andar, podem subir. O professor já está esperando.

Logo na entrada do apartamento, no corredor, uma placa azul com letras brancas determina: Pit Stop – Abandone os sapatos.

— Norma da casa – diz o simpático professor de violino, descalço. — Deixem os sapatos aqui mesmo no corredor. Fiquem à vontade. Sejam bem-vindos!

As crianças tiram logo os tênis, a mãe da menina, a sandália, e vão para a sala. O pai do menino demora um pouco, está aflito (Tô com o sapato velho, esse sapato dá chulé, a meia tá furada. E agora?). Certifica-se que estão todos distantes e tira os sapatos. Sobe aquele cheiro insuportável de quando se tira um calçado com chulé, que invade todo o corredor do pequeno apartamento.

— Acho bem bacana esse costume japonês de tirar os sapatos antes de entrar em casa. Não traz as impurezas da rua pra dentro do lar – o pai do menino ouve a mãe da menina comentar.

— Pai, você não vem?

— Já tô indo, filho! Tô vendo uma coisa aqui...

Mais do que depressa, tira as meias, furadas, nos dedões, as duas. Nem mesmo ele suporta o cheiro. Coloca-as dentro do sapato. A nhaca permanece no ar. Pega as meias, joga dentro da mochila do filho e fecha o zíper. Agora sim!

Morrendo de vergonha, o pai do menino entra na sala de visitas, quer dizer, de aula. A mãe da menina está sentada na ponta do sofá de três lugares. Ele senta-se no lado oposto e cruza as pernas para o lado contrário.

Quando o filho (ou a filha) toca, o professor ensina a postura correta dos braços, das mãos, dos dedos, das pernas, dos pés. O pai (ou a mãe) deve ficar ao lado do filho (ou da filha), em pé, fazendo com que a criança não saia da posição determinada.

— Pode se aproximar mais - diz o professor para o pai do menino. — Fica aqui perto de mim.

O menino toca lindamente, o pai transpira desesperadamente (Não é possível que ele não esteja percebendo o chulé, tô sentindo daqui, em pé!). O professor não está nem aí. Pede para repetir as notas erradas, corrige a postura. Solicita o caderno de aula para as anotações.

— O caderno tá na minha mochila – diz o menino. — Pode deixar que eu vou pegar.

Nem bem o menino abre a mochila, grita, lá do corredor:

— Éca, pai! Foi você que colocou essa meia fedorenta aqui dentro?

— Que que foi, filho?

O professor faz que não liga, a mãe da menina faz que não escuta, a menina faz a festa: cai na risada. Antes de o menino falar qualquer coisa, o pai continua:

— Esse moleque é um tremendo gozador. Você pode ir se acostumando, professor.

O menino volta para a sala.

— Quando chegar em casa, você vai lavar a mochila, pai. Não quero nem saber. O estojo tá a mó nojeira.

— Também não precisa exagerar, né, filhão? Hehe!

Agora é a vez de a menina tocar e a mãe ficar do lado. Violino novo, o dela. A mãe da menina diz que já passou no luthier (lugar que fabrica violino, manualmente). O professor elogia, diz que o som está puro, mas estranha:

— Que cheiro é esse aqui no violino. Parece cheiro de..., cheiro de...

O pai do menino desespera-se (Só falta ele dizer que é cheiro de leite azedo, queijo estragado...).

— Deixa eu cheirar – diz o menino.

O pai interrompe (Agora ele me entrega, eu mato esse moleque!):

— Não se mete com isso, filho!

— Cheiro de peru defumado – diz a mãe da menina. — Também tive a mesma sensação quando peguei o violino no luthier. É da madeira.

— Isso mesmo, peru defumado! Até que não é tão ruim assim. Madeira nobre, essa.

A aula termina, o professor resolve colocar um vídeo educativo para as crianças. O pai do menino pede licença, diz que precisa fazer uma ligação e que espera a todos do lado de fora do apartamento. Vai colocar os sapatos, nota que suas meias estão jogadas no corredor, com os dois furos virados para cima. Pega-as, coloca-as no bolso, calça os sapatos e sai (Na próxima semana, tomo um banho antes da aula, passo um talco e venho de sandálias. Na boa!).

Na segunda aula, quem dá carona é o pai do menino. Banho tomado, havaianas novas. Nota que a mãe da menina também está com sandálias novas e cheirando a lavanda.

Chegam à casa do professor, dessa vez sem se perder pelo caminho. O porteiro diz que é para esperar no térreo mesmo. O professor aparece.

— Tô com um vazamento horrível no meu banheiro, pessoal. A aula de hoje vai ser no salão de festas. Não precisa tirar os sapatos.

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