O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

O Peru da Noiva

Ela conheceu ele, bem mais velho do que ela, quando foi passar a entrada de ano na praia. Ele não deu bola pra ela. É muita areia pro meu caminhãozinho, pensou ela. Mas eu ainda fico com ele.

Ele tem casa na praia, num condomínio. Separado, três filhos, homens, jovens. Ela está mais pra idade deles, do que dele. Foi à luta. Marcaram encontro para depois das festas.

Resumo: começaram a sair, virou namoro, namoro firme. Em menos de um ano, noivado. Ela (e a família) fazia questão. Chegou a hora de conhecer os filhos dele. No próximo Réveillon, na casa da praia, foi o combinado.

O que que eu faço de ceia? Pediu socorro pra mãe. Peru, filha, é só colocar no forno e esperar apitar. A avó intrometeu-se e incrementou: rega com vinho branco, de hora em hora; fica uma delícia; vai por mim; daqui, ó.

De hora em hora?

Na casa da praia estão os três filhos dele e mais três amigos de cada, além dele e o cunhado dele. Ela e mais 14 marmanjos.

Fica sabendo que o Réveillon no condomínio é comunitário, isto é, cada um leva alguma coisinha e celebram o ano novo, juntos, no salão de festas. Depois vão todos para a praia ver a tradicional queima de fogos.

Ela quer fazer bonito pra ele, pros filhos dele, pros amigos dos filhos, pro cunhado, pros vizinhos. Vizinhos sempre reparam. Ainda mais ela, tão jovem, tão bonita. O que os outros não vão pensar do meu peru? Lembrou-se da avó, o negócio é regar com vinho branco, de hora em hora. Vinho branco, alemão. Vai olhar a receita, na embalagem, pra não ter erro. O tempo de cozimento está meio borrado.

Ela não contava com o gás fraco do fogão. Por precaução, coloca o peru no forno, ainda cedo. Não pode falhar. Nem vai pra praia com o pessoal. Fica lá, na casa, regando o peru, de hora em hora. Calorão. Na casa e na cozinha.

O pessoal volta da praia, faminto. O cunhado vai pra churrasqueira, ela pra cozinha. Cuidar da salada. Da salada, do molho, do arroz, dos pães, das caipirinhas do noivo, dos pratos, dos talheres, dos guardanapos, da mesa, da sobremesa. E do peru. Ninguém encosta um dedo nesse peru, ordena para os jovens esfomeados. Calorão.

Quando ela se toca, o pessoal já está de banho tomado, perfumado, pronto pra festa. E ela ainda naquele estado, regando peru, cheirando gordura.

Quase meia-noite, o peru fica pronto. Dourado. O cunhado prontifica-se a levar a bandeja pra festa comunitária, enquanto ela se arruma. Está louca para beliscar o peru, regado à vinho branco alemão. Horas e horas de trabalho. Praticamente o dia todo.

Ela vai pra festa, cabelos ainda molhados, vestido novo, branco, toda cheirosa. Morrendo de fome e vontade de experimentar o seu peru. Deve ter ficado daqui, ó.

Naquele ano aconteceu um racha entre os condôminos: uns queriam o Réveillon no salão de festas e outros (a turma do noivo) à beira da piscina. Não houve acordo. Duas festas, então.

Cadê o meu peru? O cunhado, distraído, não sabendo da desavença entre os condôminos, levou o peru pra festa errada.

Na ceia, ela não come nada. Ainda briga com o noivo, já meio embriagado. Depois dos fogos, cai a maior tempestade. Volta pra casa, com o vestido novo todo molhado e sujo de barro.

Toma uma chuveirada e vai dormir. O noivo chega junto.

— Hoje não, mô. Tô fora!

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Leonel Prata

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