O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Sophia Loren

Quando eu era criança, me achavam parecido com a Sophia Loren. As mulheres mais velhas, principalmente, achavam uma graça minha ‘semelhança’ com a atriz italiana de sucesso mundial. Ficava puto! Meus amigos tiravam sarro da minha cara: “Mulherzinha! Mulherzinha!”

Naquela época, quando concluí o terceiro ano primário no colégio Salesiano, de padres, meu pai me matriculou imediatamente no colégio do Estado. Quarto ano e Admissão juntos. Admissão é uma espécie de cursinho de preparação para o ginasial.

Depois de três anos em salas só de homens, saí do Salesiano e caí em uma classe mista no Estadual. Mais meninas do que meninos.

Era divertido estudar no meio de meninas. Os meninos ficavam pegando no pé das mais feias, como a Zuleica, a Tica Tica, apelido que eu mesmo dei a ela. Era a cara da personagem de um dos livros em que estudávamos: magricela, cabelos espetados, nariguda e dentuça. Ela não ligava e se divertia com isso, coitadinha. Acho até que era mais feia que a figura do livro, mas isso não vem ao caso. Entre as bonitas, Angélica! Sem dúvida alguma a mais cobiçada da classe. Era sobrinha de um famoso speaker (locutor de futebol antigamente) de rádio. Até moleque do segundo ginasial flertava com a Angélica.

O pai dela, Seu Ângelo, irmão do consagrado narrador, era dono do armazém da rua da minha casa. Quase todos os dias, como quem não quer nada, eu dava uma passada por lá, comprava qualquer coisinha e punha ‘na conta’ (meu pai pagava depois). Tudo na esperança de ver a Angélica no balcão, sem aquele uniforme horroroso do Estadual – camisa branca com emblema da escola no bolso esquerdo, saia azul-marinho abaixo dos joelhos, meias três-quartos brancas. Sapatos.

Como Educação Física era só no Ginásio, não conseguia ver a Angélica com outro figurino. Só na imaginação. Sonhava quase todas as noites com ela, de short curtinho e camiseta listrada sem mangas, de maiô azul-clarinho, de vestido vermelho longo de baile, e até pelada. Ela, no entanto, vivia trancada dentro de casa, nos fundos do armazém do Seu Ângelo, estudando. Primeira da classe, disparado. O segundo? Eu.

Tentava me aproximar da Angélica de todas as maneiras, e ela nem aí comigo. Puxava conversa no recreio, ela preferia comer lanche com as amiguinhas. Convidava para tomar sorvete, a mãe não deixava. Bem fresca a Angélica, para falar a verdade. No entanto, linda, muito linda, linda mesmo! Cabelão comprido preto, olhos azul- turquesa, boca carnuda, dentes brancos e perfeitos, nariz arrebitado, e aquela covinha no lado esquerdo do rosto, quando sorria. Minha altura. O que mais me enlouquecia (e a todos na escola) era o par de seios começando a desabrochar debaixo da camisa branca do uniforme, abotoada até o pescoço. E o tamanho daquilo daqui a pouco?

No primeiro dia de aula do segundo semestre, nossa professora resolveu fazer eleição para presidente da classe. O critério para escolha dos candidatos foi justo: os primeiros alunos – Angélica e eu. Cada eleitor deveria escrever em um papelzinho o nome do seu candidato e depositar na urna (caixa de sapato), lá na mesa da professora.

Cheguei a sonhar com a presidência da classe – o jeito mais natural de me aproximar da Angélica. Bastava nomeá-la como Assessora para Trabalhos de Ciências, por exemplo. Duvidava que ela iria resistir ao charme da ‘Sophia Loren’. Sim, certa vez, ela me disse que eu lembrava uma artista famosa, “muito linda”, que ela não conseguia recordar o nome. Me fiz de desinformado. Foi a primeira e única vez na vida que não fiquei incomodado em ser comparado com a Sophia Loren.

Não teve campanha para a presidência do quarto-ano. A professora apenas justificou os critérios para escolha dos candidatos e falou um pouquinho de cada um, destacando somente nossas qualidades, apesar de a Angélica ser infinitamente melhor do que eu. Só tirava 10. Eu, que não estudava e gostava de uma farra, ficava entre o 7 e o 9, o suficiente para a honrosa medalha de prata.

Hora do voto! Cego de paixão, não tive dúvida: ANGÉLICA (escrito bem grande em letra de forma). Levantei da minha carteira lá no fundo e fui, cheio de amor pra dar, depositar meu voto secreto na ‘urna’.

Terminada a votação, fomos, eu e a Angélica, para a lousa. A professora começou a apuração. A Angélica anotava os meus votos e eu os dela. Pau a pau. Um pra ela, um pra mim, até o final. Resultado: 17 a 16 para a Angélica.

Perdi a grande chance de conquistar a primeira paixão da minha vida. Por 1 voto. O MEU!

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