O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Um homem pra chamar Dirceu

Outro dia, na casa do Maurão e da Ana Paula, pais do João Vítor, contei que comecei minha carreira de jornalista trabalhando em uma pequena editora que fazia revistas de letras de músicas cifradas para violão e guitarra. Quem tirava as letras das canções dos elepês era a Leninha, garota ainda, um tanto desligada, como convém a qualquer estagiário.

Lembrei-me de como Leninha tirou ‘Como nossos pais’, do Belchior, sucesso na voz de Elis Regina: É você que é mau passado e que não vê que o novo sempre vem. O correto, todos sabem: É você que ama o passado...

Sempre que ouço essa música, até hoje, eu a canto com a ‘letra’ da Leninha. Acho que tem mais a ver.

Maurão logo se lembrou do Raça, grande amigo do clube, corintiano-sangue-bom. Depois de umas cervejas e outras, o Raça soltava o verbo:

— Odeio essa Legião Umbanda. Ridículos. Não sabem fazer música. Tem uma lá que eu não consigo entender até hoje o que eles querem dizer: Tenho um gado distraído / Impaciente e indeciso... O gado tá sempre distraído, até aí beleza, mas o que tem a ver com o resto?

A música em questão é ‘Quase sem querer’, de Renato Russo. Tenho andado distraído / Impaciente e indeciso / E ainda estou confuso...

Ana Paula levanta-se.

— Que Leninha, que Raça, que nada! Vocês não viram a minha irmã, a Ana Lúcia!

Ana Lúcia, entre suas inúmeras qualidades, em todos os sentidos, é distraída. Superdistraída. Adora karaokê. E faz questão de cantar sem ler os caracteres: “Sei tudo de cor e salteado; aquelas letrinhas miúdas só servem pra atrapalhar, tirar a concentração”.

Sábado passado, por exemplo, ela arrasou com ‘Como eu quero’, do Kid Abelha. E com direito a bis (Ana Lúcia não larga o microfone, vale registrar). Mesmo sob aplausos e urros da plateia – ‘gostosa!’ -, ela voltou para a mesa indignada.

— Acho um absurdo a Paula Toller, moça tão linda, famosa... Não sabe que é verruga e não berruga que se fala.

— Mas quando é que você ouviu a Paula Toller falar berruga, Ana Lúcia?

- Ela não falou, ela canta. Tá na letra, não reparou? Acabei de cantar no bis! Parece que bebe!

Diz pra eu ficar muda

Faz cara de mistério

Tira essa verruga (bermuda)

Que eu quero você sério

Tramas do sucesso

Mundo particular...

Nas férias, viajando com a família, Ana Lúcia resolve cantar para afastar a mesmice da estrada. Fecha os olhos, balança a cabeça para os lados, e libera seu lado romântico: ‘Noite do prazer’.

Na madrugada a vitrola rolando um blues

Trocando de biquíni sem parar

(Tocando B. B. King sem parar)

Sinto por dentro uma força vibrando uma luz

A energia que emana de todo prazer

Caco, o maridão, com todo jeito, diz que a letra não é bem assim...

— É isso que você quer, né? Sabia! Já estragou a viagem. Não canto mais!

No sítio da família, quem canta na piscina na hora das caipirinhas e dos acepipes é ela. Só ela. Desta vez, manda um forró para alegrar ainda mais o ambiente.

Na sua boca eu viro fruta

Chupa que é viúva!

Chupa, chupa

Chupa que é viúva!

A filha adolescente, tomando sol, de costas, não se contém e grita mais do que ela:

— MÃE, É UVA! Chupa que é DE uva! Chupa que é de uva!

Ana Lúcia abre um bico deste tamanho, enrola-se na sua canga indiana e sai da piscina resmungando: “Só queria levantar o astral. Não canto mais!”.

Reunião com casais de amigos na casa da irmã. A conversa é sobre música, Ana Lúcia falando sem parar:

— E aquela do Dirceu?

— Dirceu? Não conheço nenhum Dirceu. Que música que ele canta? – pergunta a irmã.

— Ele não canta, ignorante. Quem canta é a Marina. A música é do Erasmo Carlos. Mó sucesso, toca toda hora no rádio. Vai ser a minha próxima no karaokê.

E solta a voz:

Você precisa de um homem pra chamar Dirceu (de seu)

Mesmo que esse homem seja eu.

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