O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Barbárie!

— Senhor Elizeu Firmino do Nascimento, o que o senhor tem a declarar sobre a acusação que fizeram contra a sua pessoa?

— O doutor pode me chamar só de Nascimento.

— Tenho aqui uma reclamação de um morador do edifício no qual o senhor trabalha. Por perdas e danos. O senhor pode ficar a vontade, seu Nascimento.

— Eu te juro pro senhor, doutor delegado, que não tenho nada a ver com a história. Eu tava lá na portaria, fazendo o meu serviço, o turno da noite, quando o playboy chegou, com aqueles olho virado, completamente bêbado e embriagado.

— A que horas se deu o ocorrido, senhor Nascimento?

— Era uma base de umas quatro, quatro e meia da manhã. O playboy não deu nem boa-noite e nem bom-dia. Entrou cheio de pressa. Até deixou uma caneca de chopps, pela metade, dessas de festa da cerveja, na muretinha da escada da portaria. A cerveja tava quente. Não sei se o senhor conhece, a portaria fica na entrada, bem perto da calçada. O prédio fica no fundo do terreno. Tem uma distância de mais ou menos uns trinta metro da portaria até o prédio.

— Vamos aos fatos, senhor Nascimento. Aos fatos!

— Uma hora depois que o playboy subiu, levei um susto danado, doutor. Senti um cheiro do capeta. Pensei aqui comigo: eu dormi, os cachorros entraram no prédio, fizeram cocô no jardim, amanhã o zelador me pega, tô fu...

— Sim!

— Saí da gurita e fui ver o que era. Fui na direção do edifício, que fica lá no fundo, como eu te falei pro senhor. Não deu cinco metros, doutor, não acreditei naquilo. Duas trilhas de... bem... quer dizer..

— O senhor fique a vontade...

— ... de bosta, doutor delegado. É isso daí: bosta pura!

— De cachorro?

— Não, doutor. Cocô de pessoa.

— De quê?

— Cocô de pessoa. De gente como a gente, doutor. Tinha dois caminhos de merda. Duas trilhas, de pequenos montinhos de cocô, assim, ó! Uma seguia em direção à entrada do edifício e a outra contornava o edifício e ia lá pro fundo, em direção do banheirinho e do quartinho, que fica na lateral, no vestuário. Vestuário, que fala, né?

— Sim. Prossiga!

— Primeiro eu segui a trilha da entrada do edifício. Ela dava no elevador. Não acreditava que era possível uma coisa daquela. Abri a porta do elevador, doutor... Bomba atômica! Bomba atômica de verdade! Te juro pro senhor! O elevador estava inteirinho cagado. Coisa nunca vista. Um cheiro da porra! Quase vomitei. E sabe o que o playboy fez, que me deixou mais arretado ainda? Limpou os pés cheios de merda nos trilhos da porta do elevador. Aquilo me deu um trabalhão danado pra limpar. Isso não se faz, doutor... Até cotonete emprestado da esposa do zelador, eu tive que usar.

— Sim...

— Não agüentei aquele cheiro. Saí de lá e fui atrás da outra trilha, a que vai pro banheirinho. Pensei aqui comigo: até que o moleque tá com boas intenção, foi acabar o serviço no banheirinho e depois se limpar. Acontece que a água do banheirinho é cortada durante a noite.

— Sim, e daí?

— E daí não adiantou nada, doutor. O moleque rebocou a parede inteira de merda. Era merda pra tudo quanto é lado. Fiquei desesperado, fui acordar o Severino. Severino é o zelador, gente muito correta. Aí, já era uma base de uma seis hora, porque o dia já tava clareando.

— Seis horas da manhã?

— É a hora que o tiozinho do sexto andar sai para passear com o cachorro. Já chegou nos nervo, o homem. Magrinho daquele jeito... Nunca vi ele daquela maneira. Disse que o uól da entrada do apartamento dele tava todo cagado. Lá é um por andar, não sei se o senhor conhece.

— Prossiga.

— Aí, eu fui com o Severino olhar o uól do tiozinho. Ele é viúvo, mora sozinho, coitado. Coronel aposentado. A coisa lá não era pouca, não. Tinha uma montanha de merda, na base de uns dez centímetros mais ou menos assim, ó. O Severino até tirou retrato com o celular dele. Ele não acreditou naquilo. Ele me disse pra mim: isso é coisa de cavalo! Como é possível um ser humano fazer um negócio daquele, doutor... Sei lá o que ele comeu.

— Senhor Nascimento...

— Desculpa, doutor delegado. Só mais uma coisinha. Até a empregada do playboy veio reclamar comigo. Disse que o moleque chegou todo borrado em casa, bêbado e embriagado, colocou o pijama por cima da calça suja e deitou debaixo do cobertor. A patroa dela mandou ela limpar tudo no dia seguinte. Lençol, cobertor, travesseiro, fronha e até o colchão. Tudo. Ela disse que não ia limpar coisa nenhuma, que ela não era lavadeira. Tá de aviso breve.

— Senhor Nascimento, como o senhor afirma com toda convicção que foi o menino que fez essa sujeirada toda? Não pode ter sido outra pessoa?

— De jeito maneira. O Severino que descobriu. O playboy mora no quinto. Tava tão breaco e apertado, que errou de andar e foi parar no sexto. Soltou o barro no sexto mesmo. E depois deixou as marca dele, cheio de merda, no botão 5 do elevador. Os outros botão tava tudo limpinho. Só pode ter sido ele, o senhor tá me compreendendo?

— E o senhor de idade, o dono do cachorro, do sexto andar?

— O tiozinho? Não quis nem conversa. Tava nos nervo. Saiu logo. Disse que quando voltasse, queria ver o uól dele limpinho e cheiroso, senão dava parte pra polícia por percas e danos. E era para limpar rapidinho, porque só ia levar o cachorrinho pra fazer cocô na rua.

— Muito bem, senhor Nascimento... Por enquanto, o senhor está dispensado.

— Obrigado, doutor. Vamos, Severino! Não te disse pra você que essa história ia dar merda?

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