O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Futebol-arte

Outro dia recebi e-mail de um amigo: As 10 Regras do Futebol de Rua, ‘o verdadeiro futebol de macho’, de autoria anônima. Viajei imediatamente no tempo: Lins, interior.

Na minha infância não havia rua asfaltada na cidade. Ou era paralelepípedo ou terra. Jogávamos no paralelepípedo da Rua Oswaldo Cruz, em frente à casa de um dos elementos da turma.

Lulinho, Minduim, Anta, Policarpo, Zelão, Nirto-Pereba, Jáquissu, Turquinho-Cara-Dura, Corotinho, Cabeça, Fenemê, Maletão, Panela, Patinho, Roliço, Cersinho e eu. Essa era a turma, se não me falha a memória.

A duração do jogo: cinco vira dez acaba ou quando a mãe do dono da bola chamasse. Os ruins iam pro gol, os pernas-duras jogavam pelas pontas (direita ou esquerda, dependia com qual pé chutava), os que usavam óculos ficavam no meio (para evitar trombadas bruscas), os gordos eram os beques, os craques iam pro ataque.

A bola. As vezes não havia bola. Aí a turma improvisava: meias de nylon usadas das nossas mães, caixa de sapatos da Casa Ideal, lancheira mais velha de uma irmã mais nova, lata vazia de leite condensado, tampinha de guaraná Caçula. Qualquer coisa servia.

Quando juntava toda a turma, dividiam-se os times – os melhores tiravam jan ken po (pedra, papel e tesoura) e escolhiam. Alguns ficavam de fora. Motivos para substituições: quando o pai (ou a mãe) de alguém aparecia e levava, pela orelha, um dos craques para fazer lição de casa, ou quando alguém arrancava o tampão do dedão do pé. Nada que a água benta da torneira do quintal de alguém não resolvesse e o guerreiro voltava para a arena, solicitando nova substituição.

Quando o jogo era só entre a gente, um gol ficava na calçada de cá, entre a árvore e o muro de alguma casa, e o outro na calçada de lá.

Quando surgia jogo contra a turma de alguma rua, os chamados ‘clássicos’, ocupava-se a rua inteira e o gol era o que estivesse às mãos: tijolos, camisas emboladas, chinelos, livros de escola... Teve um jogo contra o pessoal da Vila Junqueira, lá – o ‘campo’ era de terra batida, mais fácil e gostoso de jogar –, que um moleque deu a ideia de colocar o irmão mais novo de ‘trave’. O pequeno até fez as vezes de ‘balisa’, mas a mãe apareceu e não teve mais jogo naquele dia. Uma pena. A cancha era uma delícia, bem diferente da nossa. Quando chovia, era o máximo jogar na Junqueira.

Nos nossos jogos de futebol de rua, as partidas eram interrompidas em determinadas situações. Quando a bola entrava pela janela de alguma casa – nesses casos, esperávamos dez minutos pela devolução voluntária da redonda. Se isso não acontecesse, tirávamos jan ken po para ver quem ia bater na porta da casa e pedir a pelota. Inicialmente com modos, depois com ameaças de depredação e muitos nomes feios. Ou quando passava alguma gostosa na rua. As vezes eram as próprias mães de alguém da turma. A gente cobiçava. Aí, o jogo não só era interrompido, como encerrado, devido à briga generalizada. Ou ainda quando passavam carros e caminhões pela rua, o que raramente acontecia. Charretes e bicicletas ninguém ligava. O que atrapalhava, um pouco, era quando os cavalos faziam coco no campo de jogo.

Quando nada disso acontecia, a pelada só era interrompida quando escurecia, hora da janta. Nos jogos noturnos – havia ruas bem iluminadas e a turma ia pra lá – os rachas só terminavam com ameaças dos vizinhos de chamar a polícia.

Nos nossos jogos de futebol de rua não havia regras, só não valia jogar o adversário dentro do bueiro. A justiça esportiva era resolvida na porrada mesmo, prevalecendo os mais fortes ou quem pegasse a primeira pedra. Quando alguém se dignasse a dar uma de ‘juiz’, separando os dois adversários e colocando a mão entre eles, ganhava quem cuspisse primeiro.

Pelé e Garrincha, só pra citar alguns, começaram jogar futebol na rua.

Lulinho, Minduim, Anta, Policarpo, Zelão, Nirto-Pereba, Jáquissu, Turquinho-Cara-Dura, Corotinho, Cabeça, Fenemê, Maletão, Panela, Patinho, Roliço, Cersinho e eu, também.

Agora não tem graça alguma. Ninguém mais joga bola na rua, como na minha infância. Nem dá mais. Tem mais carro do que gente.

 

(Para os meus amigos de infância e para o internauta anônimo que colocou a bola do futebol de rua na rede.)

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