O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

É o Mé!

A Banda do Mé, o bloco que tradicionalmente abre o Carnaval da cidade, está na concentração, aquecendo os tamborins, se esbaldando de .

Boa parte dos homens veste-se de mulher, com os ‘seios’ seguros por sutiãs dos mais variados tamanhos e cores, dependendo do ‘peito’ que protege. São empresários, profissionais liberais, executivos, funcionários públicos, ex-jogadores de futebol da região. Tem de tudo. Casados, a maioria. As mulheres ficam por perto, de olho nas suas ‘esposas’. Dizem que quem gosta de se vestir de mulher no Carnaval, no fundo, no fundo... Dizem! Têm uns que até partem pra cima dos homens, querendo beijar no rosto; se rolar, na boca, não se importam nem um pouco.

Alguns vão só com fraldão, vestidos de bebês, com mamadeiras grandes, penduradas no pescoço, cheias de sabe-se lá o quê dentro. Enfiam o frasco na boca do primeiro que aparece pela frente. Uns cospem o líquido na hora, outros pedem mais.

Surgem as drag queens, maquiadérrimas. Comenta-se que é gente da própria cidade, vivem em São Paulo, no Rio de Janeiro e até em Paris. Seios fartos, de silicone. Simpáticas, elegantes e esnobes – não se misturam aos bofes, isto é, às ‘mulheres’ dos peitos de mentira, das perucas mal-ajeitadas, dos barrigões, das pernas peludas, calçadas em meias (dessas tipo redinhas), equilibrando-se nos saltos altos, que mal cabem em seus pés.

O ‘corneteiro’ da Banda do Mé é uma figura folclória da cidade, que passa o ano a andar pelas ruas, com uma corneta debaixo do braço. Na realidade, corneta sem som, porque ele toca na base do faz-de-conta, colocando o bocal no queixo e apertando as teclas do instrumento, ao melhor estilo Miles Davis. Ele infiltra-se no meio dos músicos da banda e se realiza ‘tocando’ o seu trompete.

Está na hora de entrar na ‘avenida do samba’. Os foliões, pra lá de aquecidos, descem a rua entoando o grito de guerra do bloco, sob aplausos entusiasmados do público.

— É o Mé! É o Mé!

A população da cidade sai às ruas para participar da folia. Ficam nas calçadas para acompanhar o desfile dos blocos. Muitos, em frente às suas próprias residências, nas janelas, com familiares e amigos, como se estivessem em camarotes especiais. Outros, confortavelmente sentados em cadeiras ou poltronas, colocadas no passeio, para apreciar o espetáculo.

Os homens vestidos de mulher e as drags circulam sem parar, brincam e provocam todo mundo na plateia. Tudo na mais santa paz.

Os seguranças, com terno preto e gravata idem, camisa branca, com os braços para trás, como que algemados, suados, circulam rente com a cerca que separa a população que assiste da calçada e os passistas que desfilam na rua. Seriíssimos. Eles usam fones de ouvido, falam pelo rádio o tempo todo, como se alguma ocorrência estivesse em curso. E ainda têm de aguentar, sem reagir, os foliões que brincam com eles, principalmente os homens vestidos de mulher e as drags. Nunca sorriem. Estão ali para garantir a segurança dos cidadãos.

— É o Mé! É o Mé!

Uma mulher idosa, obesa, com shorts bem curtos em cetim verde-limão, barrigona de fora, bustiê de lantejoulas de múltiplas cores, que mal cobrem os seios, já sob o severo efeito da gravidade, e um boné laranja, cheio de estrelinhas amarelas, colocado na cabeça com a aba para o lado, sobe a rua, pela calçada, na contramão. Vai provocando os foliões que desfilam na avenida. Um homem integrante do bloco, com barba branca aparada, se aproxima da cerca e tenta beijá-la. Ela recusa. Faz ‘doce’. Mas não perdoa o jovem de cabelos espetados que se aproxima dela, fazendo beicinho, como se fosse beijá-la. Ela o pega pelo pescoço e taca-lhe um tremendo beijo na boca. De língua. O rapaz tenta fugir, ela não deixa. Com muito esforço, e a ajuda dos amigos, consegue soltar-se. Sai limpando a boca, toda suja de batom vermelho. A coroa obesa continua sua caminhada na contramão, de olhos, arregalados, em outros beijoqueiros.

— É o Mé! É o Mé!

A banda avança na avenida. Duas velhinhas abrem a janela e acenam para os participantes. Oferecem uma jarra de suco. ‘Não tem cerveja, vovó?” Outras drags queens (ou seriam homens fantasiados de mulher?), que parecem ocupar uma república, provocam as drags que estão na pista: “Aí, sua bruxa de perna fina, pega uma vassoura e sai dessa vida!” O recado é para a mais alta e animada do grupo. “Vem aqui que eu te dou na cara, sua horrorosa, despeitada!”, responde a magricela, falando grosso, batendo a mão na bunda.

Crianças fantasiadas, ao lado dos pais, assanham-se ao ver a banda passar. Querem entrar na folia. Velhos sorriem. A moça feia acena para os rapazes do bloco. Um jovem casal se amassa e se beija na soleira da porta de uma casa fechada, sem se importar com o som agudo e desafinado dos instrumentos de sopro, e o batuque desencontrado das caixas e dos tamborins. Nada é ensaiado, ou combinado. O importante é a folia.

— É o Mé! É o Mé!

A dispersão é em frente da igreja Matriz. Os homens vestidos de mulher e as drags, finalmente, se encontram frente a frente. Uns reparam como é que outros fizeram para realçar os generosos decotes: bolinha de tênis, limão galego, laranja baiana e até mamão-papaya. As drag queens siliconadas fazem caras e bocas ao ver aqueles peitos peludos que mais parecem salada de frutas. A coroa obesa, de bustiê com lantejoulas, não deixa por menos, tira os seios para fora, nas escadarias da igreja, e diz, cheia de si: “Sessenta e um anos! Tudo original! Pega aqui,ó, pra vocês sentirem firmeza”.

Os seguranças aparecem, com os paletós completamente molhados de suor, exaustos, para dispersar os foliões: “Circulando, pessoal, circulando!”.

Todos se abraçam, e voltam para a calçada para ver o próximo bloco, que já desponta lá em cima, na avenida do samba.

É o mé!

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