O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Olhar popular

Outro dia, ao dar minha caminhada diária, após o almoço, pelo meu bairro (Itaim Bibi, em São Paulo), vejo uma viatura da PM fechando a João Cachoeira, a partir da Pedroso Alvarenga. Justamente o meu trajeto. O local está cheio de populares (popular é todo cidadão ou cidadã que está na rua e não protagoniza os acontecimentos; assiste).

— Assaltaram o Bradesco!

Quem me passa a informação é um ‘popular’, isto é, não é polícia (os mocinhos), não é bandido (os vilões), muito menos vítima (os figurantes). Popular, apenas.

— Mas acho que dá pra passar.

Resolvo seguir o meu caminho de sempre, desta vez pela calçada cheia de populares. Notei que o ambiente está até calmo, pelo acontecido. Não corro risco de uma bala perdida. Do lado da agência bancária estão os policiais – da Polícia Militar e do GOE (Grupo de Operações Especiais), da Polícia Civil do Estado de São Paulo; do outro, os populares. No meio do rua, várias carros da civil (caminhonetes pretas) e da militar (viaturas). Os policiais ignoram os populares, mas os populares não tiram os olhos deles. Fotografam e filmam tudo com seus celulares.

— Aquele fortão de óculos escuros até que dá um caldo – diz uma popular, referindo-se, obviamente, a um dos policiais civis.

Os civis usam roupa preta, colete à prova de balas, pistola no coldre. Cada um segura uma metralhadora, imensa, em uma das mãos, como se fosse um mastro de bandeira ou uma vela de penitência. Não usam boinas. A maioria com cabelos bem curtos ou até carecas (máquina zero). Quando olham para os populares, é com cara feia, como convém. Os policiais militares estão fardados, igualmente com coletes à prova de balas, revólveres nos coldres, quepes. Policiais civis e militares estão separados. Enquanto os civis permanecem na porta da agência – ninguém entra, ninguém sai -, os militares estão mais próximos da outra calçada, como que tomando conta, para que os populares não se aproximem do local do ocorrido. Alguns com as mãos apoiadas nos revólveres; outros, para trás.

— Já pegaram os bandidos, estão nesses camburão aí – revela um popular para outro.

— Era uma base de uns seis assaltantes – reforça uma popular. — Eu vi quando a polícia pegou eles. Graças a Deus que não teve tiros. Já pensou a tragédia?

Os policiais civis não trocam palavras com os militares e vice-versa. Cada um conversa do seu lado. Estão todos de bom humor. Os policiais civis são mais jovens, altos, corpos atléticos, parecem seguros de si, determinados. Os militares, nem tanto: têm de todas as idades, alguns bem baixos, outros gordinhos (barrigudos mesmo), tímidos; tem até mulher. Quando se encontram, batem continências. Se é uma militar, continência, seguido de beijo no rosto e sorriso amigável.

Um policial civil aproxima-se dos populares e vem conversar com um senhor bem magro, alto, cabelos brancos, bigode amarelo, que fuma sem parar. Trata-se do gerente do banco. O policial diz que as pessoas vão permanecer na agência para as devidas averiguações, porque pode haver suspeitos entre eles.

— Minha colega tá lá dentro, seu guarda! – grita uma popular.

O policial diz que está tudo sob controle, que os bandidos foram desarmados e que a situação está voltando à normalidade.

— Arma de brinquedo - comenta um popular. – Foi por isso que passaram pelo raio-x. Plástico. Tudo de plástico. Renderam os seguranças e aí pegaram as armas de verdade. Os cara não são fracos, não. Coisa de cinema isso daí!

— E eu, toda vez que vou ao banco, fico presa naquela coisa de vidro, que gira e para de repente – fala uma senhora, obesa. — Tenho que descarregar a minha bolsa inteira na caixinha transparente e avisar pro guardinha que o apito do alarme foi por causa do meu celular. Ai que vergonha, gente!

Nisso, alguns policiais civis tiram dois dos elementos de dentro de um dos camburões e os levam para um outro. Estão bem vestidos, camisas, calças e sapatos sociais. Mãos amarradas (não algemadas) por uma cordinha de couro preta, para trás. Um, magro, alto, de óculos, cabelos bem cortados, repartidos milimetricamente do lado. Outro, gordo, bem gordo, careca, recém-barbeado, olhos claros, pinta de cidadão acima de qualquer suspeita. Pode passar perfeitamente por um gerente de empresa. O magro é empurrado, todo encolhido, para dentro do camburão, pela porta de trás. Já o gordo complica a operação. Não há espaço para os dois. Os policiais meio que forçam a entrada do gordo. O magro olha feio para eles, como quem diz: não tão vendo que não cabe? Um policial japonês bate a porta, como que forçando um porta-malas de carro comum, lotado de bagagens.

— Olha a beca dos cara, meu! Parece que vão pra missa!

— Vão é tomar o maior cacete na delegacia, isso sim. Não quero nem pensar.

Um grupinho de populares discute se aquela agência tem ou não caixa-forte, dinheiro guardado, fila no caixa, essas coisas de banco, banco de verdade.

— Isso aí é agência moderna, de serviços, só tem caixa eletrônica! – exclama um jovem de terno, cabelos melados de gel, no mesmo tempo que fala ao celular.

— Então os ladrão são muito burro, meu camarada! Toda essa palhaçada pra assaltar caixa eletrônica? Nunca vi! Tem mais é que apanhar mesmo.

Uma mulher alta, loira, sandálias prateadas, de saltos, vestido florido pouco acima dos joelhos, sai de dentro da agência amparada pelo civil dos óculos escuros. Ela soluça. Ele estufa o peito.

— Vem chorar aqui no colo do papai, princesa! – diz um popular.

— Casava na hora – emenda um outro. — Olha a cor do esmalte dos pés da mina, velho! O que que é aquilo?

Continuo minha caminhada. Lá de cima da sobreloja do restaurante ao lado da agência, um negro, bem-humorado, boné do grupo de rap Pavilhão 9, grita pro seu amigo, aqui, na calçada, entre os populares:

— Sai daí do meio dos branco, neguinho! Vão achar que tu é suspeito!

Aos poucos as pessoas vão deixando a agência. Algumas sorridentes, outras assustadas. Ao encontrarem com conhecidos e parentes na rua, abraçam-se, choram até. Momento de emoção.

Toca o celular de uma popular.

— Sou eu mesma! Avisa aí o chefinho que eu vou me atrasar um pouco. Só tô esperando o Águia Dourada, o helicóptero da Globo. Vou dar tchauzinho pra eles. Vou aparecer no Jornal Nacional!

Sigo meu caminho. Os populares se dispersam.

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