O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

O figurante figurante

— Claudinha, figurina ele. E bota ele ali na rua. Vamos, rápido!

A ordem do assistente de direção para a produtora me deixou gelado. Fiz que não era comigo. Não estava ali para aquilo. Só fui acompanhar meu filho menor, o Leo, três anos e poucos de idade, na “glavação” (é assim que ele diz) do especial de Natal da TV Cultura. Ele, sim, estava lá para ‘trabalhar’, com crédito nos caracteres e tudo o que tinha direito. Seu personagem, como não poderia deixar de ser, vai ser uma criança, e ele só tem que brincar em cena. Cenas noturnas em uma simpática vila nas Perdizes, em São Paulo.

— Vamos, Claudinha, figurina ele!

É comigo o negócio... Pronto! Já fiquei nervoso (como está o meu cabelo, nem fiz a barba, tô com cara de cansado, ih, vai ter de trocar de roupas... só me faltava essa...). Me levaram para uma das casinhas coloridas da vila, onde estava toda a produção. Colocaram-me uma camisa laranja, quente, passada na hora, uma calça pula-brejo azul-marinho e um sapato/botinha marrom, usado, dois números maiores do que o meu, com meias de seda brancas, novas. Ainda bem que tinha algodão para completar o número do calçado. Figurino anos 1970. Depois, fui penteado, sem ver no espelho como ficara o topete. Colocaram laquê (fixador) nos meus cabelos e ainda me passaram um pozinho no rosto e na testa. E eu sem ver o resultado dessa frescura toda.

Fui para rua fazer a cena, com o pescoço duro para não prejudicar o cabelo endurecido, efeito daquilo que me borrifaram. Tinha que vir caminhando por uma rua escura em direção à câmera (uns 20 metros), segurando um garrafão de vinho, fazer uma curva à esquerda, bem na frente das lentes, e entrar em uma das casinhas. Só isso.

— Atenção, gravando! Pode vir, figuração!

Lá vou eu em direção ao diretor, aos atores, aos produtores, aos outros queridos figurantes, aos curiosos, aos milhões de telespectadores que, certamente, irão me ver na tevê. Aos meus 15 segundos de fama! Seriíssimo. Vou todo tenso (não posso olhar para a câmera, não posso olhar para a câmera, isso é coisa de amador), segurando o garrafão de vinho com a mão direita suada (será que deixo o braço esticado ou levanto um pouquinho assim na altura da cintura para aparecer o muque?), faço a curva (aqui é o close, será que pegaram o nariz?) e entro na casinha, procurando, desesperadamente, um espelho para ver como ficou o meu penteado e a minha cara de bunda.

O diretor vai lá no monitor ver como ficou a cena.

— Vamos repetir! Mais devagar, figuração!

Volto pro meu lugar (pronto! ele não gostou! será que eu atrapalhei tudo com essa minha cara de peixe morto?)

O diretor inventa. Pede para eu entrar agora pelo lado esquerdo da rua, segurar o garrafão com a outra mão, trêmula, e cumprimentar um novo figurante que vem em direção contrária à minha. O cumprimento é igual aos dos esportistas quando fazem ponto: bater uma mão na mão do outro. E dizer: Feliz Natal!

— Silêncio! Gravando! Ação!

Caminho lentamente (será que estou indo muito devagar?) em direção ao outro cara que vem de lá, bem tranquilo, um pouco mais rápido e seguro do que eu. Aperto meu passo, cruzo com ele, erro a batida de mão.

— Corta! Voltem para suas posições. Silêncio! Gravando!

Controlo as minhas passadas e acerto o cumprimento: Feliz Natal! Faço a curva à esquerda bem na frente da câmera (será que vai dar close? deve estar pegando de baixo pra cima, vai aparecer a papada, deixa eu esticar o pescoço, vou sorrir bem de leve, assim...), tento um ar de felicidade onde imagino estar a câmera dando um superclose no meu rosto, faço a curva (será que o meu cabelo ficou bom visto de lado?) e inovo: dou uma paradinha na porta da casa, limpo os pés no tapete e passo a mão lentamente nos cabelos (duros). Entro. Fico lá dentro da casa, agora mais à vontade, pensando no que fazer. Cadê o espelho? Saio correndo feito barata tonta dentro da casa. Não tinha. Não tinha um puto de um espelho naquela casinha colorida da vila. Nem no banheiro!

— Pode sair, figuração! Ficou bom.

Não tive como ver a cena no monitor. Tanta gente! Só me resta assistir na tevê. Vamos embora que está tarde. Leo, o pequeno, deu um show de espontaneidade nas inúmeras cenas que apareceu.

Avisei amigos e parentes. Fiquei grudado na Cultura. Minha cena era logo no início. Foi tão rápida, tão distante, tão escura... Ninguém dos meus amigos e parentes reparou.

Nem eu, pra ser sincero.

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