O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Amigos para sempre

Assim que chegou à maternidade, Lúcia foi encaminhada para os procedimentos. Sua bolsa rompera antes de completar oito meses de gestação, mas estava tudo sob controle. Alberto, o marido, ficou no corredor, ansioso, andando pra lá e pra cá, esperando notícias. Primeiro filho. Como será? A cara do pai ou da mãe? Ou uma mistura dos dois: os olhos e os cabelos dela e a cor de pele dele? O importante é que venha com saúde.

No corredor, Alberto conheceu Antônio Carlos, igualmente pai de primeira viagem, pra cá e pra lá. A mulher dele, Carmem Cecília, também estava lá, na sala de partos: de hoje não passa, já atrasou mais de uma semana, revelou Antonio Carlos.

Eduardo, pequenino e careca, filho de Lúcia e Alberto, pouco mais de dois quilos, e Gustavo, grandão e de cabelos cacheados, primogênito de Carmem Cecília e Antonio Carlos, quase quatro quilos, nasceram praticamente na mesma hora. Ambos de parto normal.

Alberto e Antônio Carlos fizeram amizade no corredor; Lúcia e Carmem Cecília, o mesmo, na sala de parto. Sem um saber do outro.

Resumo do episódio: Alberto (doravante chamado Beto) & Lúcia (Lucinha) e Antônio Carlos (Carlinho) & Carmem Cecília (Carminha) ficaram amigos de verdade. Amigos de se encontrar todos finais de semana. Os maridos discutiam futebol e tomavam cerveja. As mulheres trocavam ideias de como cuidar dos bebês e amamentavam. E jogavam buraco, nas horas vagas; as mulheres contra os homens.

A amizade entre os casais, por causa dos pimpolhos, Eduardo (Dudu) e Gustavo (Guga), crescia a cada dia, assim com os próprios.

Quando Dudu e Guga completaram 11 meses, as famílias resolveram fazer uma viagem, para comemorar. Afinal, os pequenos já estão crescidos (quase andando sozinhos) e vai ser muito legal um passeio todos juntos. Carlinho, pescador, sugere Ilha Comprida: lá tem uma pousada de pescadores que é fora-de-série. Carminha, olha de lado, mas endossa; Beto e Lucinha topam na hora: saímos na sexta depois do almoço, assim a gente não pega trânsito.

Lucinha e Carminha jamais imaginaram a quantidade de tranqueira que os bebês necessitam para um simples final de semana fora de casa: carrinhos, banheirinhas, brinquedos, roupinhas de frio e de calor, travesseirinhos, cobertozinhos, fraldas diurnas e noturnas, mamadeiras pra leite e pra suco, aquecedores de mamadeiras, vaporizadores (Lucinha não dormira a última noite, por causa do nariz entupido do Dudu), etecétera, etecétera. Fora as malas delas próprias, contemplando as quatro estações do ano, e mais as dos respectivos.

Cada um no seu carro, combinam. E vamos andar rápido, porque tem uma hora que apagam as luzes da pousada e da ilha inteira, avisa Carlinho.

As famílias chegam à Cananéia, cidade ao lado de Ilha Comprida. O acesso para a ilha tem de ser de barco. Carro não chega lá. Pegam todas as bagagens e lotam a pequena embarcação. As crianças choram nos colos das mães. Eu não vou nesse barquinho lotado, de jeito nenhum, diz Lucinha, mal-humorada, reclamando de dor de cabeça. Carminha concorda. Os maridos vão na frente, descarregam as bagagens e voltam para pegar as mulheres e os filhos. Levam um bom tempo nessa função. Começa a escurecer. As crianças continuam chorando, berrando de fome.

Já na ilha, cada família vai para o seu quarto: dois beliches, um criado-mudo. Banheiro? No corredor. As crianças continuam chorando, berrando de fome. Ainda não conseguem desfazer as malas. Como se não bastasse, Dudu faz cocô, mole, desses de vazar a fralda. Neste momento, apagam-se as luzes da ilha, da pousada.

Lucinha e Beto, à luz de vela, só conseguem ajeitar tudo de madrugada. Beto dorme na cama de cima de um dos beliches (na outra fica parte das bagagens), Lucinha na de baixo, e Dudu na outra, protegido por malas, travesseiros e cobertores. Começa a chover forte. Dudu volta a chorar, desta vez com medo dos trovões. Lucinha também chora. Começam as goteiras, bem em cima de Beto. Faz frio. Um inferno!

No dia seguinte, o maior sol. As famílias se encontram no refeitório para o café da manhã. Ninguém conseguiu dormir. No outro quarto, a mesma coisa: escuridão, raios, trovões, choros e goteiras. Lucinha diz que não fica mais um minuto naquele lugar. Resolvem ir embora, apesar de os pedidos de Carlinho, que encontrara alguns companheiros de pesca na pousada. De volta para o quarto, para pegar as bagagens, Lucinha vê uma galinha em cima do seu travesseiro. A penosa foge assustada com a presença dela, deixando como lembrança, um ovo. Que ela pega e explode na parede.

É a mesma alteração com bagagens, crianças e barcos, no retorno para o continente. Lucinha está radical, quer voltar para São Paulo de qualquer jeito, quer dormir. Em Cananéia, passam em frente a um belíssimo hotel. Carlinho sugere: por que a gente não fica aqui, pegamos uma praia, as crianças se divertem? Contrariada, Lucinha aceita o convite do amigo. Quem sabe agora, naquele cinco estrelas, possa descansar?

Solidárias, as famílias resolvem ficar no mesmo chalé: um espaço bem grande, com dois ambientes – cama de casal e berço, em cada um -, cozinha e amplo banheiro. E luz elétrica. E geladeira. E televisão.

O dia foi perfeito. Até arriscam uma pescaria, com os equipamentos que Carlinho trouxera. As crianças, exaustas, desmaiam na cama, logo depois do jantar. Beto & Lucinha e Carlinho & Carminha também resolvem dormir cedo. Cada casal no seu ambiente.

Boa noite! Boa noite!

Não deu meia hora para Carlinho começar a roncar. Carminha, a esposa, manifesta-se, contida: psiu, Carlinho!, o Beto e a Lucinha estão logo ali, olha as crianças... Lucinha, irritada, cutuca Beto, que já dorme: só me faltava essa, o cara ronca feito um porco! Quanto mais o tempo passa, mais Carlinho ronca. Todo tipo de ronco que se possa imaginar.

As vezes, um ronco marcado pelo sopro rápido do ar pelas narinas e boca, semelhante ao produzido num relincho curto de cavalo (Carminha manifesta-se em voz alta: quer parar com isso, Carlinho?). As vezes roncos longos e baixos, que gradualmente aumentam em um crescendo ensurdecedor (Lucinha chora e cutuca o marido: minha cabeça vai explodir!). As vezes, sons curtos e violentos, semelhantes ao barulho feito por tenistas quando estão jogando (Beto assobia, bate palmas, imita carroceiro quando solta as rédeas e faz o cavalo andar, como se mandasse beijos em ‘voz alta’ - diziam que isso funcionava). As vezes, grunhidos contínuos (Lucinha chora, fala baixinho para o marido: putaqueopariu, esse filhodilmaputa vai me matar!) As vezes como um velho carro com problemas de motor ...

O dia já está amanhecendo. Por um instante, Carlinho para de roncar. Lucinha suspira, aliviada. Agora dorme, meu bem, consola Beto. É quando Carlinho volta a se manifestar e solta a bufa. Bufa, não. Peido! Trinta segundos de peido!

Fazem as malas no mais absoluto silêncio. Até as crianças sentem o clima, estão comportadas. Cada um no seu carro.

Boa viagem! Boa viagem!

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