O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Nas alturas

Os dois trabalham pendurados em cordas, presas no topo de edifícios, sentados em banquinhos minúsculos, com um balde de cada lado. Descem de acordo com o comando que dão com a mão, numa espécie de freio.

Depois de meses de treinamentos, trepados em morros de pedras, estão aptos para o primeiro serviço profissional de suas vidas: verificar se as pastilhas do prédio de 18 andares de um bairro classe média da cidade estão nos trinques. As que estiverem fora do lugar, devem ser arrancadas, com um martelinho e um prego gigante, para serem substituídas depois.

O serviço é lento. São milhares (milhões?) de pastilhas. Os dois não têm medo de altura nem do perigo. “Isso aí é mais seguro que sair de a pé pela rua, meu querido”.

Na ‘estreia’, descem próximos um do outro, dando uma geral no edifício. Bem devagar. Tipo reconhecimento de terreno. Observam tudo. Trocam ideias.

— Quem inventou essa moda de colocar pastilha em prédio é uma besta, né, não, Elizeu? Mania!

— É... Pelo visto, o serviço vai longe, Leandro. Esse prédio é mais velho do que andar pra frente. Tá soltando tudo, olha isso.

— Por mim, arrancava essa bosta e metia uma tinta. Amarelo-ouro, já ouviu falar? Um espetáculo! Tem um chegado meu lá da área que pintou o barraco dele de dois andar com essa tal da amarelo-ouro. Ficou da hora. A coisa brilha com o sol. Tem que ver.

— Até que o visual daqui de cima não é de jogar fora. Lá no treinamento era só pedra e mato, tá lembrado? Olha quanta piscina nos prédio vizinho, lá embaixo, que beleza! Tudo azulzinha. Dá até vontade de pular daqui mesmo.

Nos próximos dias, cada um irá para um lado: Elizeu, para a parte da frente, onde ficam as janelas das salas e dos quartos, e Leandro, para os fundos, onde estão os vitrôs das áreas de serviço e dos quartinhos das empregadas.

O trabalho começa às oito da manhã, em ponto, e vai até ao meio-dia, quando dão uma parada para o almoço. Depois é retomado à uma da tarde e finalizado às cinco. Serviço minucioso. A ordem é arrancar qualquer pastilha que esteja, o mínimo que seja, despregada da parede. Os dois agora só conversam na hora do almoço, sentados no chão, no S1 (primeiro subsolo).

— E aí, Elizeu, beleza lá na frente?

— Mais ou menos. Muita pastilha solta. O melhor lá da frente é a loirona do dezessete, tá ligado? Essa loira, vou te falar uma coisa, Leandro... O que que é aquilo? Parece que é a propósito. É eu aparecer na janela do quarto dela e pronto. Faz que não está me vendo e tira o pijama azul clarinho pra ir tomar banho. Quase caí lá de cima outro dia, quando ela voltou do banho enrolada na toalha e desenrolou bem em frente da janela. Na minha cara! Pele cor-de-rosa, maluco!

— Ih, rapaz! Sabe aquela moreninha que foi embora ontem de tarde, toda cheirosa, calça apertada, sandália de plataforma? A do cabelo esticado?

— Sei... A das unhas do pé pintada de florzinha... Sei quem é. O que que tem ela?

— Antes de ir embora, ela toma banho. De vitrô aberto, bota uma fé? Trabalha no 12. Já sei os horário dela e não dá outra: desço até lá e fico martelando na parede. Ela me vê e nem tchuns. Fica cantando e rebolando lá dentro. Coisa de louco, Elizeu.

— E a mocinha do treze, Leandrão? Troca de roupa o tempo todo na frente do espelho, quando não está no celular com as amiga. E vai jogando as roupa no chão. Nunca gosta de nada. Grita pra mãe dela que não tem roupa, que isso que aquilo que não agüenta mais essa vida. E o guarda-roupa dela não cabe mais nada.

— Troca de roupa de janela aberta, Elizeu?

— E ela sabe o que acontece no prédio? Põe a música no último volume e não tá nem aí. Tira o sutiã na maior. Duas peras, Leandrão. Assim, pra cima, maluco! E pensa que ele tá preocupada se tem gente dependurada do lado de fora do trezimo andar? Num tá nem aí. Eu, sim, tô aí! Tô aí, não. Tô lá, tá ligado?

— Te contei da babá do quatorze? Chega às dez em ponto e vai se trocar no quartinho. Até a calcinha dela é branca, pequenininha, parece de boneca. Outro dia ela me viu do lado de fora. Ela viu que eu vi ela trocando de roupa e nem se importou. Sabe o que ela fez? Deu uma risadinha e ainda falou pra mim tomar cuidado pra não se machucar. Sabe o que eu disse, na lata? Gato tem sete vidas, minha branca de neve. Eu sou o seu príncipe encantado.

Alguns dias depois...

— A loirona só falta me chamar pra pular pra dentro do quarto dela. Quando eu desço no andar dela, já tá de banho tomado, peladona na cama, passando creme nas perna. Precisa ver a batata da perna dela. Aquilo que é batata de perna. Agora, a mocinha do treze que troca de roupa continua nem aí. Tá pior. Só eu passar pelo andar dela, que resolve experimentar todas as roupas do armário. Aquela mina tem o capeta no corpo, Leandrão. Ó o que eu tô te falando! Não sei nem se é de maior.

— Não comenta com ninguém, Elizeu. Tô saindo com a moreninha do doze. Ela me falou pra mim que o sonho dela é descer pelas corda sentada no meu colo, tá ligado? E a babá do quatorze? Tá gamadinha no papai aqui, sim, senhor. Dei até uns pega nela na escada, entre o quatorze e o quinze. Agora, a melhor mesmo é a morena que toma sol toda manhã na piscina do prédio do fundo. Sem a parte de cima do biquíni, tá ligado? Dois peitão deste tamanho. Mamãozão maduro.

Mais alguns dias de trabalho, o zelador resolve trocar os dois de postos. Elizeu vai pros fundos e Leandro pra frente.

Bem, a loira (oxigenada) não é lá essas coisas. Aliás, muito acima do peso ideal. A jovem não troca de roupa o tempo todo, coisa nenhuma. Dorme o dia inteiro. Por outro lado, a moreninha dos fundos trabalha feito louca e nem chega na janela. A babá, coitada, fica por conta do bebê. E como o bebê chora. E a tal morena da piscina do prédio vizinho, nada mais é do que uma senhora idosa, de maiô azul-escuro, andando sem parar pra lá e pra cá, na parte rasa. A tarde inteira. E só.

Hora do almoço dos dois. Silêncio. Estão receosos. Com certeza, envergonhados.

— E aí, Leandro, tá gostando lá da frente?

— Da hora, Elizeu! E você não me falou nada da japonesa do sete. Tava escondendo jogo? Começou me oferecendo chá... Faz coisas que você nem imagina. E lá nos fundo, beleza?

— Bem que você poderia ter me contado da cozinheira do nove. Prepara um cuscuz que eu vou te contar...

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