O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Meu amigo Charlie Brown

Charlie Brown está entre os sessenta e os setenta anos, ninguém sabe ao certo. Bem nascido, magro desde criança. Elegante. Perfumado. Professor de História aposentado, músico nas horas vagas. Nunca deixou sua pequena cidade natal, por nada deste mundo. Gosta mesmo é de jogar pif-paf com os amigos, sempre estupidamente acompanhado pelas ‘loiras’ geladas.

Como tem mania de chamar os outros de Charlie, ganhou o apelido de Charlie Brown. Apesar de franzino, bebe feito gente grande. Nunca foi visto sóbrio, segundo as más línguas; nem bêbado, conforme o próprio. Verdades ou mentiras, trata-se de um cidadão acima de qualquer suspeita, avesso à violência, simpático, bem-humorado, amigo e querido por todos.

Charlie Brown não fica um minuto sem beber, cochicham os mais chegados. Certa vez, foi passar o final de semana na chácara do companheiro de copo e de baralho, o Flecha, conhecido colecionador de miniaturas de garrafas de uísque, para refrescar as ideia e tomá uns goró. Curioso para conhecer a famosa coleção do parceiro e ávido por um gole, ao ver aquele monte de garrafinhas em cima da penteadeira de um dos quartos da bela casa de campo do amigo, não teve dúvidas: pegou a primeira à sua frente e entornou todo o conteúdo goela abaixo. Vendo a cena, o filho do caseiro arregalou os olhos e começou a gritar: “Pai, pai, o homem bebeu o perfume da filha do Seu Flecha!”

Outra noite, Charlie Brown largou o pif-paf antes dos outros, porque já tinha perdido muito e estava mais pra cá do que pra lá. Foi para casa mais cedo, afinal, amanhã é outro dia. A sorte vai mudar.

Chega em casa, cambaleando. Vê no jardim, bem em frente à sua porta, um leão. Um leão e um jegue. Acho que exagerei desta vez... Sem tirar os olhos daquela ‘visão’, cambaleou, chegou perto, recuou, cambaleou, tomou coragem, aproximou-se. Quase caiu. Deu dois chutinhos, com a parte de fora do pé, na barriga do bicho: “passa, passa!”. A fera cresceu e rugiu. Zuzo bem, pelo menos eu não estou louco... E saiu correndo, trançando as pernas, desesperado, de volta para o clube, onde os amigos ainda jogavam baralho e bebiam.

— Ué, vortô? Quer deixar as cueca agora, Charlie Brown? Tá branco, homem! Viu assombração?

— Um leão! Um leão de verdade!

— Xi, tá mar das ideia! Agora tem que internar ele, turma.

— Por tudo que é sagrado! Um leão do tamanho desta sala. Até dei um totó com o pé, assim ó, na bunda dele. O bicho virou pra mim, me olhou no fundo dos óio, mostrou os dentão amarelo e deu aquela rugida: RRRROOOOAAAR!

— Xiii..!

— Leão com bafo de onça! Mau hálito fedorento do fiadumaputa! O Pinduca chegou perto e começou a latir, assustando o jegue. Tomou um coice e foi parar lá do outro lado da carçada, batendo no muro do Airtão. Parecia coisa de desenho animado da televisão. Só vendo. Caiu duro no chão, o coitadinho. Vamos lá tirar os bicho do jardim!

Um dos parceiros de jogo, um tal Geraldo Salsicha, acha que Charlie Brown não deve estar tão ‘mar das idéia’, como imagina o amigo Xuvisco, e a história pode ser real. Desconfia que foi obra do Chico Ligeiro, do Uirso Sapo e do Fiotão, distintos cidadãos da pacata cidade, expulsos do circo por comportamento etilicamente incorreto. Prometeram vingança. Devem ter ido até a jaula do leão e, com uma cegueta (espécie de serra), da loja do Fiotão, serraram as grades para o bicho escapulir. O leão saiu pela cidade, com o jegue lhe fazendo companhia, e foi parar no gramadinho em frente ao portão da casa do Charlie Brown.

— Só pode ter sido isso – conclui Salsicha, abrindo mais uma latinha. — O Charlie Brown pode estar falando verdade, Xuvisco!

Os amigos do pif-paf, já meio desorientados devido ao adiantado da hora e ao excesso de latas, resolvem encerrar o jogo por ali mesmo. Aos olhos dos companheiros, pela primeira vez na vida, Charlie Brown parece sóbrio, preocupado com o destino do Pinduca, que pode até estar morto uma hora dessas.

Vamu ver esse ‘leão’ de perto, Charlie Brown!

Lá chegando, cadê o leão? Cadê o jegue? E cadê o Pinduca?

— Não tem nem bosta dos bicho pra contar a história, Charlie Brown!

— Mas eu vi com esses óio aqui, ó. Por tudo que é sagrado! Tavam bem ali...

— Ih, tá mar das ideia! Num tô dizendo? Vamu embora, turma!

Charlie Brown, arrasado, agacha-se no gramado, cai para o lado e adormece. Encolhido. Só acorda com as lambidas do pequenino Pinduca, que, de tanto latir, espantara os bichos da porta da sua casa.

Charlie Brown jurou para ele mesmo que nunca mais ia beber na vida. Foi só o Geraldo Salsicha passar na residência dele, com um baralho de plástico novinho em folha, desses de naipes grandes...

— Vai ser lá na chácara do Flecha, Charlie Brown. Quer ir?

— Minutinho só. Deixa eu soltar o Pinduca.

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