O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

A mina do cheque ouro

Um dia anunciaram que chegariam novos colegas na agência. De tempos em tempos, há uns tempos, o Banco do Brasil promovia concursos, concorridíssimos, no país inteiro, e distribuía os aprovados para suas milhares de agências em todo o território nacional. Lembro-me perfeitamente da minha prova.

Morava em Lins. Estudei pra caramba, aulas particulares de matemática e português e curso intensivo de datilografia, um dos exames mais difíceis. Já viu um bancário datilografando (hoje, digitando)? Quando prestei o disputado Concurso do Banco do Brasil, perdi alguns preciosos minutos no início da avaliação da datilografia, travado e assustado com o barulho ensurdecedor das máquinas de escrever e seus velozes pilotos. E tempo valia nota. Enquanto meus futuros colegas avançavam cinco linhas, eu andava uma. E tudo errado. Mesmo assim, passei. Fui trabalhar na Agência Luz, em São Paulo, perto da estação de trem.

Era sempre bom quando chegavam novos colegas. Para minha seção, veio um japonês, estudante de odontologia da USP. Na seção ao lado – Cheque Ouro –, apareceu uma garota diferente das que estávamos acostumados a ver na Luz. A começar pela cor levemente avermelhada de seus longos cabelos. Nem alta nem baixa. Nem gorda nem magra. Corpo com tudo no lugar. Rosto de boneca, nariz arrebitado. Dezoito, dezenove anos, a Eliani. No máximo. Lili, depois de algumas semanas.

Lili não olhava para ninguém, nem para os lados, ficava na dela, distante de todos. Logo se tornou o objeto de cobiça da agência. Antes, as honras eram para a Momoko, japonesa muito gostosa, que, diziam, era caso do gerente. Momoko vivia com roupas novas, desfilando seu belo corpo pelos corredores da Luz. Japonesa loira, alta, sensual, provocante. Ela era diferente e chamava a atenção dos funcionários e dos clientes, sem exceção. Acho que ficou meio a fim de mim, mas não liguei. Não fazia o meu tipo, tinha mau hálito e o dedão do pé menor que o dedo do lado. Impliquei. E ela e todos os colegas ficavam indignados. Até duvidavam da minha masculinidade. Como não ‘catar’ uma mulher daquelas?

Eu queria mesmo era a menina tímida do Cheque Ouro. Ela continuava ignorando a minha presença, apesar de todas as gracinhas que eu fazia para ela, de longe. Uns diziam que tinha um noivo na Agência Centro, outros que tinha uma filha pequena, que era mãe solteira desde os dezesseis. Cada um contava uma história. Ninguém conseguia se aproximar dela.

Certo dia, depois da centésima vez que eu mirava meu olhar para a mesa da Lili, ela abre o maior sorriso em minha direção. Olho para os lados e para trás, para ver se é comigo mesmo. É. Gelei na hora. Procuro me sentar em uma posição mais descontraída, cruzo as pernas, faço pose (o que será que deu nessa mina?). Respondo ao sorriso, completamente sem-graça. Ela se levanta, decidida, e vem para o meu lado (que sorriso lindo, que rosto, que dentes...). Caminha em minha direção (nossa, ela é ruiva mesmo...), me olhando fixamente (tem os olhos verdes, é mais bonita ainda de perto...). Chega bem próximo (pernas grossas, ainda bem...). Bastante segura, diz que já reparara em mim há algum tempo (até que os peitos não são tão pequenos, será que tá sem sutiã?) e que estava sem jeito de puxar conversa (o que que eu falo agora?). Gostava do meu modo de ser (meu cabelo não está nos melhores dias e essa espinha no meu rosto que eu acabei de espremer...) e queria me conhecer melhor (será que ela percebeu que eu estou tremendo?). Eu não acreditava no que estava ouvindo e vendo. Só dizia legal! legal! E tentava disfarçar o nervosismo. Parecia adolescente. E bobo.

O chefe dela, um ‘cavalo’, dá um grito do outro lado do salão, e a chama de volta para o Cheque Ouro: Dona Eliani! Que alívio! Será que ela notou que eu estou completamente ‘fora de si’? Nesse dia, fui para casa nas nuvens. Se a Lili quisesse, casava com ela. Na hora.

Ficamos de nhem-nhem-nhem um bom tempo. Amiguinhos. Ela não dava a menor chance para eu mudar o rumo das conversas e irmos direto pros finalmentes. Os colegas morriam de inveja: “Como é, vai deixar escapar? Já não deu conta da japonesa...”

Não tinha jeito, a menina do Cheque Ouro não me dava o menor crédito, mas também não encerrava a conta. Com o tempo, passou a me chamar de apelidos carinhosos: Gato, Miau... Ela virou Pitel. Eu estava loucamente apaixonado por ela e, tinha certeza, ela por mim.

Numa sexta-feira, Pitel perguntou se eu queria ir para um sítio, passar o final de semana com ela e uns amigos. Topei na hora. Frio na barriga. Frio na barriga coisa nenhuma, dor de barriga mesmo. É agora ou nunca! Ela percebeu a minha alegria e logo explicou que o sítio era pequeno, simples, mas o pessoal era muito divertido, “pra cima”.

Vesti a camiseta azul-clarinha, colada no corpo, que eu me achava o máximo com ela, a bermuda azul-marinho desbotada, para combinar, o par de tênis novo (sem meias), e fui para o local do encontro da turma. Também levei uma mochila, com o meu maiô listradinho de azul e branco, e uma toalha, caso tivesse piscina (e ela de biquíni, já imaginou?). Estava pronto pros finalmentes. Finalmente!

No ônibus, pelo repertório da cantoria da ‘galera’, saquei tudo na hora: por eu ter o espírito “jovem e alegre”, a Lili só queria que eu conhecesse o pessoal da seita “muito bacana” que ela fazia parte. A mina do Cheque Ouro não queria nada com o gato, apenas mais uma ovelha para o seu rebanho.

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