O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Artista brasileiro

Peguei o ônibus articulado – aquele tipo sanfonado, com dois ‘vagões’, que, por incrível que pareça, cabem poucas pessoas sentadas lá dentro – no ponto inicial, na estação do metrô de Santana. Destino: Itaim-Bibi. Sentei-me no último banco, na parte mais alta – internamente o coletivo tem vários níveis -, para ter uma visão geral e me distrair na viagem curtindo o movimento.

À medida que o sanfonado avança no seu itinerário, as pessoas entram e ocupam os lugares, sentadas. Natural. Logo, está cheio, e os novos passageiros acomodam-se em pé mesmo.

Às vezes você me pergunta

Por que é que eu sou tão calado

Não falo de amor quase nada

Nem fico sorrindo ao teu lado...

Ouço Raul Seixas vindo não sei de onde. Mas esse ônibus tem rádio, televisão?

O rapazinho do cabelo moicano, dois ou três brincos em cada orelha e piercing mal colocado nos lábios, senta-se no degrau, sem se importar com as joelhadas dos passageiros que estão em pé. Ouve música no celular, com fone de ouvido, que dá para ouvir daqui. A gordinha com a calça apertada e a barriga de fora, porque a blusa é alguns números menor, e curta, fica em pé ao lado dele, deixando a protuberância abdominal ainda mais à mostra, já que tem de levantar o braço para se segurar. O altão do sapato marrom de bico fino, que desde que entrou não tirou os olhos de sua apostila mal impressa em preto e branco com imagens detalhadas de cabeças de cobras, equilibra-se em pé. A magrinha de cabelos compridos até a cintura, de blusa branca rendada fechada até o pescoço e saia cinza abaixo dos joelhos, usa sandálias pretas e meias de seda da cor da pele. Carrega vários pacotes. E passa no meio dos passageiros esbarrando em seus pertences sem a menor cerimônia. Como consegue carregar tanto peso, magricela desse jeito?

Você pensa em mim toda hora

Me come, me cospe, me deixa

Talvez você não entenda

Mas hoje eu vou lhe mostrar...

Demora um pouco para eu perceber que a música é ao vivo. Alguém ali no meio daquela muvuca, encoberto pelos passageiros que estão em pé, manda um Raul Seixas até que caprichado e afinado. Canta bem a voz que vem não se sabe de onde. Quem será?

Eu sou a luz das estrelas

Eu sou a cor do luar

Eu sou as coisas da vida

Eu sou o medo de amar...

Aos poucos as pessoas vão saindo e eu consigo enxergar o ‘Raul Seixas’. Canta e toca violão. Vagou um lugar do meu lado e a gordinha da barriga de fora e sandálias de plataforma senta-se. Ainda me dá um bundada para se acomodar melhor. Paciência. Cheirosa. Aqueles perfumes que você não esquece o resto do dia.

Eu sou a mosca da sopa

E o dente do tubarão

Eu sou os olhos do cego

E a cegueira da visão...

Agora eu vejo bem o ‘Maluco Beleza’. Está no meio do busão, entre um vagão e outro, na ‘sanfona’ do coletivo. Estatura mediana. Usa boné bege com a aba virada para trás, camisa verde-claro com um casaco marrom por cima (faz frio), calças jeans surradas e botinas amarelas. Canta com os olhos fechados. Pernas abertas.

Mas eu sou o amargo da língua

A mãe, o pai e o avô

O filho que ainda não veio

O início, o fim e o meio

O início, o fim e o meio...

Finalizada Gita, sem aplausos ou qualquer manifestação da distinta plateia, ‘Raul Seixas’ permanece com os olhos fechados. Afina as cordas do seu violão velho, remendado com fitas colantes prateadas, essas de prancha de surfe. O moicano passa por ele, rumo à porta de saída, ignorando-o. A magrinha raçuda da meia de seda e das sandálias pretas, com os dedos magros sobrando para fora do calçado, sai atrás e dá uma pacotada em ‘Rauzito’, tirando-o do lugar. No entanto, ele permanece impassível, com os olhos fechados, afinando as cordas de seu instrumento de trabalho, como se nada tivesse acontecendo. O da apostila com as imagens de bichos peçonhentos, já conseguiu seu lugar no assento bem em frente ao artista. Sua atenção continua nas cobras.

Mamãe, não quero ser prefeito

Pode ser que eu seja eleito

E alguém pode querer me assassinar...

Nosso cantor agora ataca de Cowboy Fora da Lei, com os olhos mais cerrados ainda, como que sentindo no âmago, a letra da melodia. Os passageiros que estão na frente dele (no segundo vagão) não olham para ele. E ele canta alto.

Eu não sou besta pra tirar onda de herói

Sou vacinado, eu sou cowboy

Cowboy fora da lei

Todo mundo no sanfonado não está nem aí com o cantor. É como se ele não existisse. Uma japonesinha tímida vem do primeiro vagão, onde as pessoas também não tomam conhecimento do artista, espera ele virar um pouco o braço do violão, e passa rapidinho para o lado de cá.

Durango Kid só existe no gibi

E quem quiser que fique aqui

Entrar pra historia é com vocês!

Termina a música. O artista permanece com os olhos fechados. Nenhuma manifestação dos passageiros. Sequer um olhar em sua direção.

— Agora, só mais uma canção. Não quero tomar mais o precioso tempo dos senhores. Depois, quem quiser colaborar com uma moedinha ou um vale-refeição...

Afina, em silêncio, mais um pouco as cordas do violão, e, com os olhos ainda fechados continua o seu espetáculo.

Eu quis dizer

Você não quis escutar

Agora não peça

Não me faça promessas...

Agora, Paralamas do Sucesso no coletivo: Meu Erro.

Mesmo querendo

Eu não vou me enganar

Eu conheço os seus passos

Eu vejo os seus erros

O sanfonado vai ficando vazio, os passageiros saem e passam pelo ‘Herbert Viana’ como se ninguém estivesse ali.

Então não me chame

Não olhe prá trás...

Enfio a mão no bolso para pegar as moedas, porque o Itaim-Bibi está logo ali. Pego duas de vinte e cinco centavos e fico na expectativa de como passar minha contribuição ao artista.

Ele termina a música com os olhos fechados. Fica estático por uns minutos e avança rapidamente pelo corredor do vagão de trás, sem olhar para ninguém. Tem os olhos avermelhados. Passa por mim, estendo o braço e lhe dou o ‘cachê’.

— Obrigado, senhor.

A gordinha vizinha também dá uma moeda, de 10 centavos.

— Obrigado, senhora.

Num gesto rápido, coloca as moedas no bolso de trás, sem conferir o faturamento. Não olha para nenhum de nós. Para ninguém. Como ninguém dá mais nada, ele volta para o meio do articulado. E permanece ali, em pé. Fecha outra vez os olhos e volta a afinar seu violão mequetrefe.

Puxo conversa com a gordinha das sandálias de plataformas e unhas pintadas com florzinhas.

— Mandou bem o Raul Seixas, né?

— É, mais ou menos. Pelo menos não tá roubando carro nem cheirando cola.

Chega o meu destino.

— Me dá licença?

Saio com dificuldades do meu banco, porque a gordinha perfumada não se levanta para eu sair, apenas vira as pernocas de lado. Encosto ainda mais naquela fragrância.

Paro bem ao lado do artista. Enquanto o motorista não abre a porta, fico observando seus movimentos. Permanece concentrado, cabisbaixo, completamente só. Continua afinando seu violão, com os dedos grossos, amarelados pela nicotina, cheio de calos nas pontas. Um anel dourado no pai-de-todos.

Deve estar se preparando para a volta do sanfonado. Talvez pensando no próximo número: do que será que esse pessoal gosta?

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Leonel Prata

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