O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Fox Paulistinha

Só tive um cachorro na vida: Dunga, um Fox Paulistinha legítimo. Isso quando eu era criança e morava em uma casa bem grande, no interior. Dunga tinha sua casinha, no quintal, para os pernoites (os cachorros naquele tempo dormiam nos quintais ou mesmo na rua, ao relento). Durante o dia, vivia dentro de casa, nos quartos, debaixo das camas. Cocô? Xixi? Quintal grande pra quê?

O Fox Paulistinha anda sumido hoje em dia, faz tempo que eu não vejo um. Parece até em extinção. Pra quem não conhece, é um cão de porte pequeno (não pequenininho, como esses de madame), branco e preto, ágil e veloz. Saltitante. Passadas curtas e rápidas. Quando nasce, cortam o seu rabo. Falam que é pra dar equilíbrio. Orelhas altas e dobradas pra frente. É inteligente e valente. Caçador. Alegre. Antigamente, era presença certa em números circenses. Ótimo cão de guarda. Leal e carinhoso com o dono e familiares, mas bastante desconfiado com estranhos.

Dunga era filho da Laika. Não a que viajou no Sputnik, nave soviética, nos anos 1950, coitada. Aquela, literalmente, foi pro espaço. Laika era a cachorra do vizinho da frente. Teve oito filhotes na primeira ninhada; entre eles, o Dunga.

Naquele tempo não havia rações para cães, quer dizer, o Dunga se alimentava com o que a gente comia: arroz, feijão, bife, batata frita... Sobremesa? Preferia sorvete. Picolé. Gostava mais do de limão. Lambia o sorvete e roía o palito até se engasgar. Também era chegado num doce de leite com ameixa preta, sobremesa habitual lá de casa. Dunga almoçava e jantava com a gente, debaixo da mesa.

Sempre alerta, era a empregada abrir a porta da cozinha, de manhãzinha, pra ele entrar correndo, por entre as pernas dela, e ir direto para os quartos, nos acordar. Pulava nas camas e só saía depois que eu e meus irmãos já estivéssemos de pé, de rostos ‘lavados’.

Namorador, Dunga traçava todas as cadelas do quarteirão. E os cachorros maiores também, nas coxas mesmo, já que nunca alcançava o alvo. E as almofadas... E as pernas das amigas da minha mãe... Naquele tempo não se usava castrar animais (onde já se viu fazer uma coisa dessas com um animalzinho indefeso?). Cachorro algum saía de casa preso na coleira. Cachorra no cio, perto do Dunga, era enrosco na certa. O cruzamento acontecia ali mesmo, na rua. Não dava pra segurar os bichos. Complicado era pedir água fria para os vizinhos, para separar o casal em transe.

De uma de suas parceiras veio o Trovão. Havia um combinado: os proprietários de cachorros machos, quando esses cruzavam, oficialmente, com uma da mesma raça, tinham direito a um filhote macho. ‘Oficialmente’ era quando o dono de alguma Fox Paulistinha legítima (com pedrigree) ligava pra casa e convidava o Dunga para cobertura. O ato era sempre na casa da noiva, como convém. Nasceu o filhotinho, Trovão.

Dois cães em casa eram muita coisa, muito cocô pra limpar. A empregada reclamou, não ia dar conta. Trovão foi dado para uma amiga da família, Dona Pequena, viúva, que adorava cachorro. O filhote não saía do lado da velha senhora pra nada. Ela o alimentava – gostava de tutu de feijão e banana cozida -, o banhava, o levava à missa.

Trovão acompanhava Dona Pequena, diariamente, à missa das sete (da manhã). Sem coleira, caminhava ao lado dela até a igreja, perto de onde morava. Só paravam para os xixizinhos do nosso amigo em todos os postes e árvores do caminho. Muitas vezes, chegavam atrasados ao ato religioso, porque o pipi-stop era um pouco mais demorado. E não tinha essa história de recolher cocô de cachorro com saquinho-plástico de supermercado. A coisa ficava ali mesmo, onde brotara, para quem quisesse pisar. Diziam que dava sorte...

Trovão entrava na igreja, sentava-se ao lado da Dona Pequena – ela ficava sempre na extremidade do banco, a que dava para o corredor central - e permanecia quietinho, com o nariz empinadinho, farejando os variados perfumes das mulheres. Só levantava a orelha quando o padre se exaltava no sermão. Não latia. Nem quando entrava na fila da comunhão, ao lado da Dona Pequena, até o altar, e todo mundo voltava-se para ele com cara de passa, passa daqui, seu viralata! O padre olhava feio para o Trovão e dava a hóstia para a Dona Pequena. Ele abanava o rabinho. Ela fechava os olhinhos.

Trovão saiu ao pai, o velho Dunga. Num de seus ‘casamentos’ oficiais, deu à Dona Pequena o direito a um macho, outro Fox Paulistinha legítimo, batizado Relâmpago. Dona Pequena presenteou a neta mais nova, recém-casada, que morava bem próximo dali, com o filhote. A casa do jovem casal era pegada à de duas irmãs solteironas, bem idosas, neurastênicas, que odiavam cachorros.

Certo dia começou um zum zum zum na rua: as solteironas viram um rato enooorme entrar na casa delas. Isso já durava uma semana, quando a neta mais nova da Dona Pequena sugeriu: por que não deixar o Relâmpago farejar a casa? Um sobrado. Instinto de caçador, o jovem Fox Paulistinha não teve dúvidas: subiu a escada feito um raio, pulando os degraus de dois em dois, indo direto para o quarto de uma delas. Começou a arranhar a porta do guarda-roupa com as patas. A solteirona abriu, ele enfiou o nariz na segunda gaveta, e cráu! Abocanhou alguma coisa. Saiu de lá com a boca cheia de calcinhas (calçonas), das mais variadas cores. E o pestilento preso no meio delas.

Relâmpago fazia tudo que seus antepassados sempre fizeram. Próprio da raça. De seu primeiro ‘casamento’ oficial, seus donos tiveram direito ao Furacão, mais outro Fox Paulistinha legítimo. Logo dado de presente às vizinhas solitárias e medrosas. Agora despertadas com lambidas.

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Leonel Prata

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