O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Cu Riscado

Cu Riscado é como a avó materna do Tutinha chama crianças – tanto faz menino ou menina – travessas, traquinas, levadas, dessas que só aprontam. A versão moderna do ‘Joãozinho’, no caso dos meninos.

Tutinha é o neto mais novo dela, 4 anos. Cabelos claros, encaracolados, olhos escuros, grandes, vivos. Cara de anjo.

Onde Tutinha aparece, causa

Assim que os pais dele ficam sócios de um grande clube na cidade, a família se prepara para ir à piscina. Tutinha tem um irmão mais velho, de sete. A mãe combina com o pai que os ‘homens’ vão se trocar no vestiário masculino, enquanto ela vai para o das meninas, como convém.

Tutinha, pai e irmão mais velho entram no vestiário. Lotado. Cheio de homens pelados, a maioria adultos. Nunca as duas crianças viram uma cena como essa, na vida deles: todo mundo peladão. O irmão mais velho, não se aguenta: Olha a bunda branca daquele ali, pai! Fala baixo, filho! Que pin... Cala essa boca, filho! Já Tutinha não diz nada nem sorri, apenas observa. Olha pra lá e pra cá, com seus olhinhos atentos.

Perto da porta de saída do vestiário, rumo à piscina, Tutinha vê um tiozinho já com idade bem avançada, obeso, agachar-se na sua frente, para passar talco nos pés. Aquele bundão bem na sua cara. Não tem dúvidas, levanta o dedo indicador, olha para o pai, para o irmão mais velho, e puf! Bem no fiofó do veterano! O velho se desequilibra, quase cai de cara no chão, leva o maior susto. Vira-se, cheio de ódio, sorriso amarelo: Criança, né? O pai fica sem ação; não sabe se mata a criança ou se morre de rir.

Algum tempo depois, o irmão mais velho passa a fazer esgrima no clube e se destaca entre os associados, na sua categoria. Logo é campeão Paulista, credenciado para disputar o Brasileiro. Tutinha adora ver o irmão esgrimando. E o irmão cada vez mais envolvido e apaixonado pela modalidade. E o Tutinha cada vez mais seu fã.

No dia do Campeonato Brasileiro, não só os pais, como avós paternos e maternos, tios e primos estão nas arquibancadas, na torcida. E ele, o menino com cara de anjo, louco para falar alguma coisa para o irmão, que vai vencendo seus adversários na arena, um a um. A cada luta, Tutinha tenta atravessar a grade que separa a área dos lutadores da dos torcedores, mas não consegue. A cada luta, o quase pré-adolescente espadachim, escondido por trás da máscara que os atletas usam para proteger os olhos, fica mais tenso. Os pais percebem, de longe. Ele transpira além do normal.

Agora restam apenas dois adversários para a grande conquista. Ele ganha a semi-final, luta complicada, demorada, a mais difícil até então. Só falta uma! Tutinha não se contém, burla a vigilância, passa por baixo da grade. Vai lá para a arena atrás do irmão, que está concentrado, simulando uma luta invisível, preparando-se para a grande final.

Pais, avós, tios e primos, na torcida. Tão nervosos quanto o nosso atleta, não percebem a fuga do pequeno torcedor-fã. Ele entra na arena, cutuca o irmão, que não lhe dá a menor atenção. Chama o irmão pelo nome e sobrenome. Sem resposta. Grita! O irmão maior levanta a máscara, rosto molhado de suor, olha feio para o menor: Não enche o saco, moleque! o que você quer agora? E o moleque olha bem no fundo dos olhos do esgrimista, e dispara: Você vai perder!

O irmão, furioso, recoloca a máscara, vai para a disputa final. O pai, que percebera tardiamente a ausência do filho nas arquibancadas, chega a tempo de ouvir o que o menor dissera e ver o maior ir para a luta, no momento mais importante da sua vida, completamente desnorteado. Não sabe se incentiva o primogênito-revelação ou se esgana o caçula sem-noção. O pai vê o filho mais velho partir pra cima do adversário, ensandecido, e liquidar a fatura em segundos. Campeão Brasileiro!

Vão todos para a casa dos avôs paternos, comemorar. Tutinha está no quintal. O avô percebe o neto meio triste e vai conversar com ele, fazer alguma graça para animá-lo. O neto sempre fez questão de ignorar o avô brincalhão, quando este lhe pede beijos e abraços. Puro charme do pequeno. Ele ama o avô, mas faz questão desse dengo.

Tutinha está tentando sentar-se no selim de uma bicicleta de adulto. O avô aproveita o momento, ajeita o menino no banco, deixando-o à sua mercê, isto é, com os pezinhos abanando no ar. O avô fala baixinho no ouvido do baixinho: Ou você dá um beijo no vô, agora, ou eu te largo e você se esborracha nesse chão! O neto não demonstra a menor reação... O avô: Um beijo ou te solto aqui e pumba no chão duro! O neto nem aí... O avô: Só um beijinho! Silêncio... O avô: O gato comeu sua língua? não vai falar nada? O neto, cabisbaixo, olhos fixos no chão, respira fundo, solta o ar: Vai tomar no cu! O avô abraça e beija o neto, que se desvencilha e sai correndo.

Nem bem Tutinha entra na sala, dá uma trombada na avó materna, que vem da cozinha com uma bandeja cheia de copos de refrigerantes.

— Você não tem jeito mesmo, hein, seu Cu Riscado! – diz ela, recolhendo os cacos de vidro do chão.

— O quê arriscado, vó?

— Cu.

— Cu?

— Cu!

— Adorei essa palavra, vó!

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