O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Dinheiro pra quê?

Achava que a catraca de entrada para os trens do Metrô só era liberada quando o passageiro enfiasse o bilhete naquele buraquinho estreito e justo. Outro dia vi um cara passando por ela, apenas encostando sua carteira num determinado lugar na parte de cima de onde os chamados usuários, sempre apressados, colocam seus ingressos. Achei o máximo, aquilo. Ele aproximou a dita-cuja do negócio e a catraca foi liberada no mesmo instante, como num passe de mágica. Um dia ainda vou ter uma carteira assim...

Não se fazem mais carteiras para homens como no meu tempo de menino. Eu sonhava em ter uma igual ao do meu pai. Marrom. E mais cheia de dinheiro ainda. Sim, antigamente as carteiras eram usadas para guardar dinheiro. E só. Quanto mais estufada, mais bufunfa.

Existiam os batedores de carteiras, lógico, meliantes especializados em tirar o valioso objeto dos bolsos de trás (invariavelmente o do lado direito) das vítimas, sem que as mesmas percebessem. Havia os que roubavam armados: mãos ao alto! Sem violência, é bom lembrar. E quando a vítima tinha pouco dinheiro, era obrigada a voltar pra casa humilhada pelo elemento: vai trabalhar, seu durango kid! Mas com a carteira no bolso, intacta. Bons tempos aqueles.

Com o passar dos anos, descobriu-se que as carteiras podiam abrigar, além do dinheiro, o RG, a carteira de identidade. Ninguém mais saía de casa sem lenço e sem documento. A mãe alertava: meu filho, pegou a carteira? e o documento?

Aí, inventaram um plástico transparente na lateral das carteiras, onde os pais colocavam retratos dos filhos e os filhos a foto da jovem amada. Quem não tinha namorada, ou colocava imagens de artistas (Sophia Loren, Brigitte Bardot, Cláudia Cardinale...) recortadas de revistas ou aqueles calendários com os 12 meses do ano de um lado e imagens de mulheres loiras, mal impressas, com os peitos à mostra, do outro. Os mais saidinhos deixavam a parte pudenta virada para fora, para a alegria da turma. Aí vieram mais documentos e foram todos para dentro da carteira: CIC, título de eleitor, carteira de motorista, carteira de estudante, carteirinha do clube...

Logo, as carteiras ganharam divisórias para o talão de cheques e para cada um dos documentos. E haja espaço para papeizinhos com telefones diversos (paqueras), cartões de contatos profissionais, comprovante de loteria esportiva, anotações de jogo do bicho, recortes de classificados de jornais (procuram-se empregos)... Quem não teve agenda de telefone e de endereços do tamanho que pudesse ser colocada na carteira? O mundo cabia dentro dela.

Os batedores continuaram agindo da mesma maneira, só que pegavam o dinheiro (pouco) e jogavam o resto (documentos e papéis) fora, na primeira esquina. As vítimas mais corajosas ainda tentavam argumentar: pode levar o dinheiro, mas deixa os documentos, ô, sangue bom! Alguns assaltantes mais conscienciosos concordavam; outros, sangue-ruim, mandavam praquele lugar e seguiam seus caminhos sem olhar pra trás: se vira, playboy, documento pra quê?

As carteiras também passaram a dar guarida para documentos funcionais de outros gatunos, os políticos, com o brasão da República deste tamanho. Estes, sim, deitam e rolam até hoje com suas ‘identidades’, dando carteiradas a torto e a direito, quando querem furar filas, entrar de graça no teatro ou em qualquer outro estabelecimento público, fazer bonito pra periguete, intimidar garçom, guardinha de trânsito, polícia rodoviária... Você sabe com quem está falando?

Houve uma época em que as carteiras ficaram tão gordas, que inventaram a pochete, bolsa pequena, presa à cintura, para colocar a carteira, agora separada dos documentos e dos papéis. As pochetes logo ficaram lotadas. Essa moda não durou muito. Vieram as bolsas maiores, como as que as mulheres usavam, só que para homens. Pretas. Não virou. De volta para o futuro: carteira é carteira e vice-versa. E não se fala mais nisso.

Agora, os batedores estão quase em extinção. Muita tranqueira, pouco dinheiro pra roubar. Preferem celulares, notebooks... Sinal dos tempos.

Nada como a modernidade para dar um jeito nas carteiras dos homens de uma vez por todas. O dinheiro sumiu, deu lugar ao plástico: cartões de crédito e de débito, bilhete único, farmácia, supermercado, clube, locadora, plano de saúde, cliente especial de loja metida à besta, vale refeição, vale compras, vale alimentação... vale tudo.

Eu já peguei as manhas: passo pelas catracas do Metrô, dos ônibus, do trabalho, do clube... com um simples encostar da minha carteira, como num passe de mágica. Não abro mais ela pra quase nada.

Dinheiro pra quê?

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