O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Olha lá, olha lá no placar!

Olha lá, olha lá no placar! gritava Geraldo José de Almeida, o locutor preferido de dez entre dez torcedores brasileiros na Copa de 70, no México, a do Tri, a cada gol que o Brasil marcava. Felix, Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo e Gerson; Jairzinho, Tostão, Pelé e Rivelino, não eram fracos, não. Um time inesquecível. Para se ter uma ideia da força dessa seleção, todos os jogadores do ataque jogavam com a 10 em seus respectivos clubes. O aclamado escrete canarinho estava bonito no placar.

Placar de futebol, aliás, é marcante na vida dos brasileiros. Agora mesmo, depois de termos conquistado o privilégio de sediar a Copa de 2014, já saímos na frente para a de 2010, na África do Sul, justamente nesse quesito. Em disputa acirrada com grandes potências mundiais, e vencendo a imensa burocracia de licitações, uma pequena empresa nacional, a Digitalmatic, ganhou a concorrência para instalar no Ellis Park (o Maracanã, mais moderno, convenhamos, dos africanos), tecnologia e manutenção, by Brazil, em seu placar eletrônico. O dono do empreendimento, um cearense de 63 anos, Anazion Cordeiro, está no ramo de placares de estádio desde o ano de 1970, justamente quando Geraldo José de Almeida se esgoelava na tevê para o delírio dos noventa milhões de brasileiros de então.

Outro nordestino, José Carlos de Paula, baiano, 59 anos, assim que deixou o Exército, no Rio de Janeiro, desempregado, no início dos anos 1970, fez curso no Senai e conseguiu emprego de eletricista no estádio do Maracanã. Lá, segundo revela João Prata, jornalista, em matéria publicada no jornal onde trabalha, o Zé Baiano fez de tudo um pouco: cuidou da luz, do portão, das catracas, e até dos banheiros, função que odiava, principalmente depois dos grandes clássicos (‘torcedor mija muito de nervoso, meu rei!’). Teve um Flamengo e Fluminense, Fla-Flu, com o Maraca lotado num domingo de sol, que o Zé, além de sair rouco de tanto xingar todo mundo, assistiu a um parto em pleno estádio. Uma mulher passou mal, foi levada para a enfermaria, e deu à luz a uma menina ali mesmo. Flamenguista roxa.

O Zé, quando moleque, jamais poderia imaginar que um dia iria trabalhar naquele estádio, onde passou sua infância e viveu os melhores anos de sua vida. Viu Garrincha entortar seus marcadores, os chamados ‘Joões’, viu Didi, Quarentinha, Amarildo e Zagalo, do inesquecível Botafogo, o time da estrela solitária. Também o Flamengo, o rubro-negro de Joel, Moacyr, Henrique, Dida e Zagalo, ataque de seleção. Sem contar Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe, que dispensava comentários, quando o Santos se exibia no Maracanã. O Zé viu muito mais. Assistiu ao vivo e a cores ao milésimo gol do Pelé. Estava nas arquibancadas, rabudo, justo atrás do gol que o Rei bateu o pênalti histórico e dedicou o feito às criancinhas.

O Zé, necessitado de uns trocados, chegou a se inscrever no concurso promovido pelo Jornal dos Sports, tradicional matutino carioca, impresso em papel cor-de-rosa, com o tema "Dê um slogan para Telê Santana e ganhe 5 mil cruzeiros”. O então jogador tinha apelidos pejorativos como ‘Fiapo’ e ‘Tarzan das Laranjeiras’, em razão do seu corpo franzino (Laranjeiras é o bairro do Rio de Janeiro onde fica a sede do Fluminense, time que Telê jogava na época). E ter esses apelidos para um jogador de um clube tido como de elite – conhecido como ‘Pó-de-Arroz’ (os Bambis da época!) –, pegava mal. Telê Santana tornou-se o ‘Fio de Esperança’. Não foi o Zé o vencedor do concurso. Infelizmente.

Depois de um tempo, pelos bons serviços prestados ao ‘maior do mundo’, Zé Baiano foi promovido: ficou responsável pelo placar. Justo o placar, para onde mais de 100 mil pessoas, em grandes jogos, dirigiam olhares de amor e ódio durante 90 minutos, no mínimo. E o Zé lá dentro, solitário, escondido, transpirando, com os olhos arregalados nas torcidas, nas bandeiras, no jogo, no juiz, nos ídolos, em tudo. Mais ligado do que todos!

Naquela época, o placar era feito à mão. Havia uma caixa com as letras do alfabeto, onde o funcionário montava os nomes dos times. Quando jogava Canto do Rio contra Vasco da Gama, por exemplo, já era problema. Muitas vezes, o Zé enganou-se com algumas consoantes e a galera não perdoou: ‘Burro! Burro!’ Sua mãe também era sempre lembrada pela torcida do time que sofria um gol anulado pelo juiz, e ele, atrapalhado pelo barulho ensurdecedor das arquibancadas, colocava o tento no placar.

Zé Baiano nunca esquentou a cabeça com esses apupos de torcedor fanático e mijão. Sempre foi um funcionário exemplar, zeloso de suas obrigações. Diz com orgulho que nunca faltou a um dia sequer de serviço. Nem quando seu menor se apresentou no teatro da escola.

O que mais o preocupava, na verdade, ao montar o placar do Maracanã, era quando jogava o B O N S U C E S S O.

— A gente confunde um pouco as letra. É esse que não acaba mais, meu rei! Viste?

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