O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Oportunidade perdida

Diz um provérbio chinês que há três coisas na vida que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra proferida e a oportunidade perdida.

No início dos anos 1980, eu trabalhava na Editora Três, editava a revista Homem, tida masculina. Resolvemos fazer uma edição especial com as chacretes, nuas, algo inédito, e uma entrevista exclusiva com o ‘pai’ delas, o querido e saudoso Abelardo Barbosa, o Chacrinha.

Na época, o programa dele era gravado na tevê Bandeirantes, em São Paulo. Ele ‘morava’ no Hotel Normandie, na Avenida Ipiranga. A entrevista foi no quarto do hotel. Ele nos recebeu (eu, mais duas jornalistas e um fotógrafo) de cueca, sem a menor cerimônia.

A entrevista durou a tarde de um dia e o outro dia inteiro. A maior que concedera, até então, segundo ele. Acho que foi com as nossas caras, bem jovens, porque abriu o coração: contou detalhes de sua vida, inteira.

Ficamos sabendo, entre muitas outras coisas, que ele foi locutor de catecismo em Campina Grande (nasceu em Surubim, PE, em 30 de setembro de 1917). Que fazia teatrinho para os amigos, em sua casa, e, em qualquer festa, era o orador. Que se mudou para Recife, com a mãe. Que cursou três anos de Medicina. Que foi falar sobre alcoolismo e suas conseqüências para os jovens e acabou sendo convidado para ser locutor oficial da Rádio Pernambuco. Que passou mal e foi operado às pressas de apendicite suporada, com gangrena, quase morreu. Que durante a licença médica embarcou num navio do Loyd Brasileiro para a Alemanha, como músico (arranhava bateria na faculdade). Que o navio voltou no meio do caminho, por causa da guerra, para o Rio de Janeiro, e não para Recife, como combinado. Que resolveu estabelecer-se na capital federal. Que foi secretário de almirante e camelô, para ganhar algum. Que foi convidado por um amigo para ficar no lugar dele na Rádio Clube de Niterói.

Como não acertou como locutor comercial, pra não perder o emprego, foi ser discotecário da própria emissora. Lá, convivendo diariamente com aquele monte de discos, sugeriu aos proprietários um programa de carnaval, porque, naquele tempo, início dos anos 1940, a partir de novembro, não se ouvia outro tipo de música a não ser marchinhas carnavalescas. De tanto insistir, deram o horário das onze da noite à uma da madrugada pra ele.

Naquela época, nesse período noturno, só se tocava bolero, poesia, para ajudar as pessoas dormirem. E Abelardo Barbosa colocou no ar um programa para deixar as pessoas acordadas. Ele anunciava o cantor ou a cantora e colocava o disco pra tocar. Era assim o tempo todo. Os ouvintes achavam que o programa era ao vivo. Foi um tal de gente querendo visitar a rádio pra conhecer o cara que comandava tudo aquilo, que não houve mais sossego. Chegavam lá e encontravam o locutor de cueca, seu ‘traje’ preferido. A rádio e o transmissor ficavam no mesmo local, em uma chácara. Tudo caseiro. Se dessem descarga no banheiro, saía o som no microfone.

Diziam que em Niterói tinha um louco e o louco era ele, Abelardo ‘Chacrinha’ Barbosa. O programa era mesmo uma loucura para os padrões da época. À noite só se ouvia música calma e sussurros nas rádios. E aparece um cara tocando telefone, buzinando, batendo lata, falando alto, latindo, dando descarga. Quanto mais o chamavam de louco, mais loucuras cometia. Quer dizer, o público o ajudou a fazer seu próprio marketing, que o marcou para o resto da vida. ‘Louco’ para ele não era ofensa, era elogio. Sinal que estava desempenhando muito bem o seu papel de comunicador. Afinal, quem não se comunica, se trumbica. E ele veio pra confundir, não pra explicar.

Da rádio para a tevê foi um pulo. Na televisão nada se cria, tudo se copia. Vocês querem bacalhau? Teresinhaaa! Vai para o trono ou não vai?

Vieram as chacretes. Ah, as chacretes! Não é preciso dizer que a edição da Homem com elas, como vieram ao mundo, esgotou-se em menos de 24 horas.

Ele nos revelou sua relação com as belas e cobiçadas dançarinas. Era um verdadeiro paizão para elas, tomava conta, mas “se mijar fora do penico vai ser chamada a atenção; são 20 mulheres juntas, se deixar...”

A entrevista com o Chacrinha rendeu muitas páginas. Finalizou assim: “Você pode dizer aí: as mulheres de hoje são os homens de amanhã”. Ao nos despedirmos, me deu um beijo, falou no meu ouvido: “O negócio na vida é o seguinte: ter cuidado com mulher ligeira e cavalo que anda devagar”.

Ponto.

Alguns anos depois, toca o telefone na redação. A secretária anuncia:

— O Chacrinha quer falar com você.

Só pode ser trote.

— Diz pra ele ver se eu estou lá na esquina.

A secretária da redação, vermelha de vergonha, dá uma desculpa qualquer, desliga. O telefone toca de novo, logo em seguida.

— É o seu Chacrinha agora. Conheci ele pela voz.

Pela cara da secretaria, agora pálida, achei melhor atender.

Escuta aqui, seu viado! Vamos parar com essa frescura de não me atender e vem aqui pro Rio! Quero falar com você, pessoalmente.

Chacrinha querendo falar comigo? O Chacrinha?? Fui pro Rio de Janeiro no dia seguinte. Ele me recebeu no estúdio da Globo, onde gravava seu programa.

— Espera no camarim. Vou ao banheiro.

Fiquei ali, no meio das câmeras, das chacretes, velhas conhecidas. Ele voltou, meio que puxando as calças.

— Tá vendo essa porra dessa barriga? Isso aqui é uma merda, meu filho! Passo a semana inteira tomando remédio para soltar o intestino; quando vou gravar, fico nervoso, a coisa desanda, solta tudo; aí tenho de tomar remédio pra prender. Escuta só o barulho disso aqui, parece escola de samba.

Estava magro e abatido, bem diferente de quando nos encontramos, em São Paulo, alguns anos atrás.

— Escuta aqui, meu filho, vou completar 70 anos e queria fazer um livro para o povão, contando a minha vida. Livro pra ser colocado nas bancas de revistas, preço popular, baratinho, 1 cruzeiro, tá me entendendo? Povão!

— Mas então...

— Não tem mais nem menos. Pega aquela entrevista que fizemos, dá uma ajeitada, que tá de ótimo tamanho. Nunca publicaram um negócio falando de mim, da minha vida, como vocês fizeram. É aquilo lá que eu quero.

Não acreditei. Moleque ainda, início de carreira, e o grande Chacrinha querendo fazer um livro comigo. Não sabia por onde começar. Protelei. Ele me ligava: “E aí, seu viado?!” Era muita areia pro meu caminhãozinho, escrever um livro contando a vida do Velho Guerreiro. Procrastinei.

No dia 30 de junho de 1988, o meu querido amigo Chacrinha foi embora pra sempre. Anos depois, 1996, a Editora Globo lança um livro sobre ele, nas livrarias. Sofisticado. Caro. Completo. Definitivo. Mas sem aquele apelo popular, que ele queria tanto. Sem a mesma verdade que ele, de coração aberto, passou pra mim, naquele quarto de hotel, de cueca.

Tive a oportunidade.

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Leonel Prata

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