O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Boletim de Ocorrência

— Então foi isso, delegado – diz a elegante e perfumada mulher.

— O senhor pode escrever, por obséquio – ordena o delegado ao escrivão. – As vírgulas, ponto e vírgulas, dois pontos, aspas, etecétera, o senhor já sabe, não preciso avisá-lo, pois não?

— Quando quiser, doutor.

...que a depoente comparecera a este Distrito, por livre e espontânea vontade, para prestar esclarecimentos e reconhecer sua culpa no acidente;

...que as vítimas passaram por exames logo após o ocorrido, que a depoente assume apenas os danos físicos causados à (este ‘a’ é com crase, escrivão) garota, que, quanto ao rapaz, não responde por ele.

— A senhora não se responsabiliza pelos ferimentos do jovem, pois não?

— Não me responsabilizo não, senhor. De maneira alguma!

...que a depoente declarara que estava no seu automóvel Audi, modelo A-3, prata, parado, no cruzamento das avenidas Brasil e Rebouças, sito (este sito é com ‘esse’) no bairro de Pinheiros, nesta Comarca, quando um jovem se aproximou, bateu no vidro da janela do motorista, desculpe, da motorista, com um objeto duro, escondido sob (‘be’ mudo) uma flanela suja, e começou a gritar: “ME DÁ! ME DÁ!”;

...que a depoente tomou um grande susto, pois estava distraída, ouvindo música, vendo uma garota fazer malabarismos com três bolinhas de tênis, na sua frente;

...que a depoente, aturdida, ainda sob (‘be’ mudo, novamente) o efeito do susto que o rapaz lhe causara, abriu o vidro da janela do seu automóvel, pela metade, para certificar-se do que ele queria, pois percebera que o mesmo encontrava-se um tanto quanto agitado e nervoso;

...que a depoente disse ao rapaz, ao abrir o vidro: “Calma! Calma! Aconteceu alguma coisa?”;

...que o rapaz só dizia “ME DÁ! ME DÁ!”, que a depoente continuou não entendendo nada, e o rapaz gritou bem alto (tira o ‘bem alto’, se ele gritou, só pode ser alto, pois não?), o rapaz gritou: “ME DÁ A BOLSA!”, chamando-a de ‘efe’ (ponto) ‘de’ (ponto) ‘pe’ (ponto);

...que só então a depoente caíra em si e percebera que estava sendo assaltada, que nesse momento o meliante enfiou o braço e metade da cabeça, apenas o rosto, dentro do automóvel, para pegar a bolsa da vítima, chamando-a de sua pu... (três pontinhos) e de sua madame bisca... (coloca três pontinhos aí também);

...que a depoente, assustada e nervosa, também preocupada com as compras que acabara de fazer num shopping classe A da Capital, todas no banco de trás de seu automóvel, deu uma mordida, com bastante força, no braço do ladrão, fazendo-o sangrar;

...que o marginal, raivoso, sentindo dores, gritou: “PQP! SUA FILHA DE UMA ÉGUA! ABRE ESSA ‘EME’ (pontinho) DE VIDRO!”;

...que a depoente, nervosa, ao invés de abrir o restante do vidro da janela de seu automóvel, por completo, apertou o botão errado, fechando-o, prendendo a mão e o nariz do delinquente;

...que nesse momento, a depoente ouviu buzinas de todos os lados, que o sinal abrira, e que ela, já quase fora de si de tanto nervoso, com a boca ensangüentada, as pernas tremendo, arrancou com seu automóvel, arrastando o rapaz e atropelando a garota malabarista, que caiu no chão e começou a gritar: “EU VOU MORRER! EU VOU MORRER!”;

...que a depoente, imediatamente, recolheu a garota para dentro de seu automóvel e a levou para o pronto-socorro do Agá Ce, quer dizer, do Hospital das Clínicas, ali próximo;

...que a depoente, ciente de sua responsabilidade pelo acidente, com vítimas, pediu à (craseado) viatura policial que se encontrava parada a poucos metros do local, que fizesse o mesmo com o rapaz, porque, jamais, colocaria um bandido dentro de seu automóvel;

...que os dois jovens foram submetidos a exames e nada fora constatado de mais grave, nenhuma fratura, apenas algumas escoriações, sendo imediatamente liberados pelos médicos de plantão daquele nosocômio.

— Algo mais a declarar, senhora?

— É só, delegado.

— A senhora está liberada.

— Muito obrigada!

...que a depoente nada mais dissera; ponto final.

A mulher sai apressada da delegacia e vai direto para a casa de uma prima, no Jardim Europa.

— Tem álcool em casa, querida?

— Álcool?

— É, álcool. Zulu. Tem?

— Lógico que tenho. Pra quê?

— Pra limpar a minha a boca.

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