O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Como esquecer?

De vez em quando a comunidade ‘Linenses Cinquentões’, do Orkut, promove o encontro do pessoal que saiu de Lins há muitos e muitos anos em busca de oportunidades. Em qualquer canto do país tem um linense. Foi até criado um consulado, cônsul e vice-cônsul com faixas no peito, para localizar os ‘elementos’ e promover esses eventos. E funcionou!

Sempre é uma festa quando a comunidade se encontra. Bebe-se, come-se e diverte-se muito, como nos bons tempos, quando todos moravam na ‘Cidade das Escolas’, a “Capital da Inteligência”, como eternizou, em entrevista na tevê em branco e preto, a miss Lins, depois miss São Paulo e finalmente Miss Brasil N.º 2 (perdeu para a Vera Fischer, se é que você quer saber). Tudo no mesmo ano! Teve um rico industrial paulistano, que quando viu a miss na transmissão exclusiva da TV Tupi, Canal 4, carteou marra pra cima dos amigos playboys: ‘Vou casar com esse broto!’. Foi lá na cidade, trouxe a moça, noivou, e não é que casou de papel passado e tudo que tinha direito? Festão! Saiu em tudo que era coluna social, inclusive no Ibrahim Sued. Mas tudo isso não vem ao caso.

A festança que interessa mesmo, a dos encontros, os chamados ‘orkontros’ (nome feio, mas tudo bem), a que nos leva de volta ao passado, começa invariavelmente numa sexta à noite: coquetel para a turma (agregados) se enturmar melhor. Todos saem tortos desse ‘aperitivo’. Continua no sábado: churrasco, cerveja e caipirinha a rodo, a tarde inteira, em alguma fazenda da região. O pessoal vai embora de quatro, para tomar banho, dar aquela descansada e se arrumar para o baile de logo mais à noite. Bailão que vai até às seis da matina, quando todos voltam para onde estão hospedados, sabe-se lá como. O domingo é livre, no boteco da esquina, com chopps gelado para limpar a serpentina.

Deve ser assim com qualquer comunidade. Ninguém se esquece de ninguém. E sempre passa um filminho (erótico) pela cabeça, quando a gente vorta às origens.

Lembro-me perfeitamente do dia em que saí da minha cidade natal. O ônibus da Empresas Reunidas partia para São Paulo às 23h35 em ponto e não era leito. O leito era o das 00h05. Preferi o tradicional. Leito pra quê? Não consigo dormir viajando. Tanto faz ônibus, avião, trem, carro. Fico imaginando que o motorista pode dormir ao volante e dar merda. Também estava um pouco ansioso com a viagem, afinal, ia estudar (e morar) na Capital. Como seria? Meu pai, ali do meu lado, segurando a barra. E a mala.

Lembro-me como se fosse hoje: subo os degraus do coletivo e vejo logo de cara, na primeira fila, a Nereide. A Nereide!

A Nereide trabalhou na casa do Lulinho de doméstica – cozinheira ou arrumadeira, sei lá. Todo mundo tinha pelo menos duas (uma para cozinhar e outra para arrumar) ou mais serviçal uniformizada em casa naquele tempo.

Certo dia, o Lulinho, então com seus 14 anos de idade, apareceu bem cedo em casa dando uma de gostoso: “Peguei a Nereide!” A notícia se espalhou logo por toda a turma, afinal, era o primeiro amigo a se ‘emancipar’. Com a empregada. E dentro de casa! Rabudo!

Íamos todas as tardes na casa do Lulinho jogar botão e não tirávamos os olhos da Nereide. Morena, quase mulata, baixa, meio gordinha, feiosa. Mas a gente, na flor da idade, achava o máximo. Ela se insinuava. A gente ficava louco. E ela não ficava com ninguém. Só com o Lulinho. Fazia ‘doce’, a desgraçada.

De repente a Nereide sumiu e nunca mais tivemos notícias dela.

Tempos depois, começamos, a turma do futebol de botão, a freqüentar a famosa Vila São João, a zona do baixo meretrício, bairro afastado do centro da cidade. Havia um ritual, sempre aos sábados: antes de pegarmos o rumo da zona, íamos ao Bar do Antônio beber rum com coca-cola. Ficávamos até sei lá que horas bebendo e contando vantagens sobre mulheres. Quando a cuba-libre ‘batia’, era hora de chamar os táxis – dois fuscas brancos – no ponto em frente ao bar, e partir para o crime. Saíamos calibrados, gritando de dentro dos táxis, com os vidros fechados e embaçados: “Zooooona! Zooooona!” Uma zona.

Pirralhos, ficávamos lá olhando as mulheres com as pernas grossas de fora e os seios fartos saltando para fora dos espetaculares decotes. Morrendo de vontade. Dava até dor na barriga e na chamada região pélvica. Todos duros e ‘de menor’. Nunca me esqueço dos perfumes daquelas senhoras maravilhosas. O bairro exalava aquele olor tão característico.

Lembro-me perfeitamente que a diversão era descobrir os homens casados, entrando e saindo daquelas casas coloridas com janelinhas nas portas. Havia um código: porta com janela fechada, todas as mulheres da casa trabalhando; janela aberta, pode entrar e escolher a vontade. E como tinha homem casado na zona. Até o delegado, cidadão acima de qualquer suspeita, não saía de lá. Para sorte da turma, nunca pegamos nossos pais na localidade.

Um sábado daqueles, outro amigo, o Minduim, saiu de uma das casas, conhecida como ‘Sobradinho’, excitadíssimo: “Vocês não sabem quem está aí! A Nereide! A Nereide que trabalhou no Lulinho!” Foi um pega pra capar. É agora ou nunca, pensei rápido. Antes de todos, corri para o Sobradinho. A janelinha da porta estava aberta. Peguei a Nereide! Senti prazer (acompanhado) pela primeira vez na vida, ainda que em apenas poucos segundos. Mas senti. Jamais vou me esquecer.

E a Nereide sentada ali, na primeira fila do ônibus que estava me levando pela primeira vez para São Paulo.

Meu assento era lá atrás, na última fila. Tomei a benção, esperei meu pai sair do veículo e fui conversar com a Nereide. Ela estava sentada ao lado de um japonês com cara de sono e de poucos amigos.

Foi mais fácil do que eu imaginava convencer meu vizinho de assento, lá de trás, que eu gostaria de viajar ao lado da minha ‘prima’. O vizinho, também japonês, concordou na hora. Levantou-se rapidamente, pegou sua bagagem de mão – um saco plástico com frutas e sanduíches – e foi lá para frente no lugar da Nereide. Acho que o oriental preferiu viajar ao lado de alguém da colônia. Lá na região tinha muito disso. E ela veio aqui para o fundão encarar os quatrocentos e cinquenta quilômetros de estrada ao meu lado.

Nereide estava indo para São Paulo “em busca de trabalho”.

— Você costuma dormir em ônibus, Nereide?

— Quase nunca.

— Nem eu...

Como esquecer?

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