O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

O enterro do Seu Nonô

Quem poderia imaginar que justo no momento do enterro do Seu Nono fosse cair um toró daqueles? E as cenas constrangedoras que toda a família passou por conta da Mãe Cota, a viúva, que nem percebeu o vexame?

Seu Nonô morreu com 95, de velhice. Lúcido até o fim. Ninguém esperava, mas todos aguardavam. Seu Nonô tinha uma única ‘diversão’ nos últimos anos: arreliar com a Mãe Cota, a companheira de toda a vida, que lhe deu quatro filhas e quatro filhos, mais dezesseis netos e netas e quatorze bisnetos e bisnetas. Era chamada de ‘Mãe’ porque acolhia a todos em sua casa, contando os agregados. Tinha camas e escovas de dente de sobra.

Até antes de dormir, Seu Nonô arreliava com a Mãe Cota: o lençol não estava bem esticado e o travesseiro tinha cheiro (perfume) de empregada. Lá ia ela, trocar tudo. E depois não permitia que ela encostasse nele enquanto dormiam. Também não queria dormir em camas/quartos separados: “Estamos juntos há 75 anos, o que as crianças (os filhos, já avôs e avós) não vão pensar?”. O lençol era passado com um vinco marcante, bem no meio, que fazia as vezes de ‘limites’ na cama quando arrumada. Nenhum dos dois podia passar da ‘linha divisória’. Mãe Cota é do tipo que dorme esparramada, por isso a implicância. Do jeito de ela dormir, ele já reclamava desde o início da vida de casados – comemoraram Bodas de Brilhante ainda outro dia. O ronco e o ranger dos dentes dela a noite inteira, ele não ligava, porque sua audição nunca foi lá essas coisas, ainda mais agora. O problema era relar no pijama de seda azul-marinho dele.

As roupas dela eram outros motivos de implicância. Vestido vermelho, pode esquecer: “Não me casei com uma puta!”. Saia na altura dos joelhos: “Aonde a senhora pensa que vai desse jeito?”. Decote? Que decote? Pernas à mostra então, era um deus-nos-acuda. Bastava ela cruzá-las em uma reunião social, para ele ir para o lado oposto que ela estava sentada, só para verificar se aparecia um milímetro de coxa. E ficava lá gesticulando, movimentando as mãos ao lado de suas pernas, insistentemente, para cima e para baixo, para ela abaixar o vestido.

Seu Nonô também arreliava com as amizades da Mãe Cota. As que ficavam viúva, distância: “Isso aí, depois que perdeu o marido, deu pra ir em bailes de gente velha atrás de homem. Viúva assanhada, isso é o que ela é. Biscate!”. E não adiantava a Mãe Cota dizer que não era porque fulana tinha ficado viúva que não tinha o direito de se divertir, conhecer novas pessoas, novos ares. Nem sicrana, madrinha do primogênito, amiga de todas as horas e de uma vida toda, foi vista com bons olhos pelo Seu Nonô depois que o marido se foi: “Viúva nenhuma presta, Cotinha!”.

Por outro lado, Seu Nonô nunca deixou de reparar os traseiros femininos, especialmente os das mulatas. Qualquer uma que passava, ele olhava descaradamente e nem ligava para os beliscões e coques da mulher: “Que é isso, Cotinha?” A vida inteira foi assim. Por conta disso, todas as empregadas que passaram pela casa deles tinham de ter a idade do casal, no mínimo.

Já com seus noventa e tantos anos, Seu Nonô só saía de casa acompanhado por um enfermeiro. Quando ele avistava uma mulata ao longe na rua, vindo em sua direção, parava e começava a girar o corpo, bem devagarzinho, para o lado que ela fosse cruzar com ele, para quando ela efetivamente passasse do seu lado, já tinha girado 180 graus, ângulo suficiente para contemplar a bunda do broto. Se deixasse para virar-se assim que ela cruzasse com ele, como nos bons tempos, não daria tempo de ver aquele rabo (como se referia à anatomia do objeto de cobiça) todo, já que os reflexos não eram os mesmos. Depois completava o giro com a ajuda do enfermeiro e seguia seu caminho: “Isso que é vida, meu jovem!”.

O que mais irritava Seu Nonô era quando a Mãe Cota pedia pra ele comprar uma peruca para ela: “Meus cabelos estão caindo, ralos, Antenor (sempre o chamou pelo nome verdadeiro). Olha só!”. Isso o deixava fora de si. Começava a gritar, a tossir, a pressão caía, todas as vezes passava mal. Ela nunca se conformou. Justo ela, tão bonita e vaidosa. As outras implicâncias, os olhares furtivos para as mulheres na rua, ela estava acostumada, relevava. Agora, não poder usar peruca a fazia sofrer muito. Calada.

Quando Seu Nonô bateu as botas, com o corpo ainda quente, antes de rolar a primeira lágrima, Mãe Cota pediu uma peruca para a neta mais velha. “Não fica bem eu ir ao enterro do seu avô com um cabelo desses, minha filha”. E a neta comprou-lhe logo uma peruca loira, de franja, fios longos.

No enterro, quando caiu o pé d’água, as netas imediatamente acudiram Mãe Cota com seus guarda-chuvas. Um deles, desses que abrem com um simples clicar no botão, enroscou na peruca dela, arrancando-a. Mãe Cota ficou com seus cabelos ralos, úmidos, enroladinhos com algodão, expostos. Filhas, netas, quase a toda família fez um círculo em sua volta, para protegê-la do ridículo da cena. E ela: “Mas o que está acontecendo, gente, me larguem, tá muito calor! Deixa eu curtir a minha dor em paz!”.

Deixaram. Mãe Cota, emocionada, não entendeu direito a história dos guarda-chuvas. Usa sua peruca loira, de franja, fios longos, até hoje, pra lá e pra cá, como se nada tivesse acontecido.

Seu Nonô? Deu uma virada no caixão. E morreu de rir.

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