O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Melhor idade

O casal não sabia o que fazer para comemorar suas Bodas de Ouro. Missa (‘pra agradecer a paciência que me foi dada pra aguentar esse aí’, pensou a mulher)? Festa (‘quero tomar um porre pra esquecer os momentos que tive vontade de esganar essa criatura’, sonhou o homem)? Viagem! Presente dos quatro filhos.

“Lua de mel” no litoral. Casa de praia de um dos filhos.

— Ainda bem que os meninos nos presentearam com esse passeio, não é, meu bem? – disse ela.

— O quê?

— Sorte que os meninos nos deram de presente esses dias na praia. Adoro essa brisa, andar na areia, molhar os pés na água...

— Nessa água gelada?

— Mania que você tem de vir pra praia de tênis...

— Você está cansada de saber que eu tenho aflição com areia.

— Estou muito feliz em passar essa ‘lua de mel’ com você, sabia?

— Lua de mel... Cinquenta anos de casado e mais onze de namoro, noivado, sei lá.

— Treze anos! Oito de namoro, mais os cinco de noivado, que você me enrolou pra casar. Estamos juntos há sessenta e três anos! Não é uma maravilha? Nossa nora vive dizendo que estamos na melhor idade.

— Melhor idade... Que melhor idade? Estou surdo, não enxergo um palmo na minha frente, esse reumatismo, esse ciático, isso aqui que não funciona mais... Melhor idade é essa garotada aí jogando bola, essas meninas com a bunda de fora.

— Passou protetor solar?

— O quê?

— Protetor! Passou? Fator 60.

— Trator o quê?

— Deixa eu ver... Será que pode andar um pouco mais devagar pra eu ver se você passou protetor direito?

— Esqueci. Pronto!

— Sabia! Você vive esquecido. Primeiro dia de praia, esse solão... Pelo menos colocou o chapéu e a camisa...

— Alguma vez você me viu sem camisa na praia?

— É verdade... Corrente de vento...

— Minha renite...

— Quer fazer a gentileza de ir mais devagar?

— Estou devagar, sua tartaruga!

— Tá andando depressa pra eu não ver seus olhinhos pra lá e pra cá cobiçando a mulherada. Acho que eu nasci ontem? Pensa que eu sou cega, é? Pensa?

— Tava demorando... Já vai começar com essa história?

— Você não perdoa uma! Já olha direto pra bunda, velho tarado!

— E o que que tem? O que é belo tem que ser admirado.

— Se acanha! Acho ridículo velho olhando pras bundas das mocinhas. Ri-di-cu-lo!

— Ora...

— E se uma delas te der bola? O que você faz, garotão?

— O quê?

— Quando não te interessa, se faz de surdo. Quem não te conhece, que te compre.

— Quer um milho?

— Te fiz uma pergunta, Menino do Rio!

— Pode andar um pouquinho mais depressa, criatura?

— Você se acha até hoje! Lembra daquela sua cliente na imobiliária, antes de você se aposentar? A jovencita loira?

— A artistinha da Globo? O que que tem ela?

— Lembra que toda vez que você saía com ela pra mostrar apartamentos, encerava o carro, ia todo perfumado, crente que tava abafando?

— Fala mais alto!

— Lembra?

— Lembra o quê, criatura?

— Lembra que ela disse que você era um amor de pessoa e você ficou todo todo?

— Falou mesmo. Olhos verdes, dentes brancos, cabelos amarelos... Uma beleza! Tá na novela das oito.

— Esqueceu que ela falou que você era uma gracinha...

— ...sim, sim...

— ...que lembrava muito o avô dela?

— Ora...

— Reparou na sua camisa?

— O quê?

— Olha pra sua camisa!

— Vai implicar com a minha camisa agora?

— Essa camisa está um nojo.

— Tá fedendo por acaso?

— Imunda! Toda babada, olha só... Quer me matar de vergonha, isso, sim!

— Você acha que alguém vai olhar pra dois velhos na praia?

— Quer fazer a gentileza de andar mais devagar?

— O quê?

— ...

— Essa mancha aqui na frente é do café. Culpa sua que encheu a xícara. Essa outra é do requeijão, que você exagerou no pão. Mania...

— ...

— Que que você preparou pro almoço?

— ...

— Tô morrendo de fome...

— ...

— Te fiz uma pergunta, criatura! Perdeu a língua? Que que tem pro almoço?

— ...

Ele olha pro lado, cadê ela? Olha pra trás, uns cinqüenta metros, enxerga vultos: um bando de moleques em volta de um corpo caído. Faz meia volta, assustado. Corre até lá. Vê sua mulher desmaiada na areia quente da praia. Levara uma bolada na nuca, dos garotos que jogavam pelada.

— Foi mal aí, tio!

— Acorda, criatura! Querida! MEU AMOR!

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