O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

A falecida

— Seu Dirceu! Seu Dirceu?

Seu Dirceu mora em uma chácara, no interior, com Marluce, sua esposa, e Vó Cema, a sogra. Filhos, noras e netos vivem na capital. A propriedade fica em uma espécie de condomínio, com várias outras chácaras próximas.

— Seu Dirceu? Sou eu, o Modesto, o caseiro do Seu Manel. Socorro!

Dirceu dá um pulo da cama, assustando Marluce. Quatro horas da manhã. Abre a janela do quarto.

— Mas o que foi, criatura? Não tá vendo que horas são?

— Desculpa, Seu Dirceu! É que a Dona Dete tá passando mal. Tá ali na caminhonete. O senhor pode dar uma olhada nela?

Vó Cema logo aparece na sala, com seu penhoar rosa, para ficar ao lado da filha.

— O que está acontecendo, minha filha?

— Não estou entendendo nada, mãe. Parece que tem alguém passando mal.

— A Dona Dete tá aqui no carro, no banco de trás, seu Dirceu. Espia!

— Ish!... O que que deu na velha, Modesto? Tá branca!

— Tá passando mal, seu Dirceu! Não tá vendo?

Marluce e Vó Cema se aproximam da caminhonete velha de Modesto, Fiat, azul-desbotado.

— Tá passando mal coisa nenhuma! A mulher bateu as bota – atesta Vó Cema. — A mulher tá roxa. Preta!

— Mortinha da silva, mãe! Tá até meia fria – grita Marluce, depois de se enfiar dentro do carro e tocar na testa da mulher, com a parte externa da mão, como se estivesse verificando febre.

— Avisaram a família, Modesto?

— A família tá pra praia, Seu Dirceu. Monguangua, um negócio assim. Ela mora na cidade e se ofereceu pra tomar conta dos cachorro na chácara do genro, nesse final de semana. Tava sozinha na casa quando teve o piripaque. Só quem tem o telefone de lá da praia é... quer dizer, era a Dona Dete. Viajaram e deixaram o endereço com ela. Precisamos levar ela pra cidade, Seu Dirceu! Agorinha.

— Não sabe que é proibido transportar defundo, Modesto?

— Não sabia não, senhor. Mas, pelamordedeus! Nessa hora da madrugada...

— Eu tenho um encontro importante às 9 horas, em São Paulo... Acho que dá. Vamos colocar ela no meu carro e levar pra cidade. Marluce, você fica aqui em casa com a sua mãe, que eu vou pra cidade e volto logo.

— Acho melhor enrolar o corpo num cobertor, Dirceu. Ela está gelada – sugere Vó Cema.

O caseiro e Dirceu enrolam o corpo no cobertor e o colocam no banco de trás do carro de Dirceu, bem mais espaçoso. Partem para a cidade, próxima dali. Vão direto para a Santa Casa, cuja enfermeira de plantão não titubeia: “Óbito, seu Dirceu!”.

No muro branco em frente à Santa Casa, do outro lado da rua, Dirceu vê uma propaganda, pintada, com letras tortas, da Casa Funerária Tomaz, com o número do telefone bem grande, em vermelho, e a frase: “Descanse em paz, com a Funerária do Tomaz”. Dirceu vê aquilo e corre para o orelhão da esquina, para pedir ajuda, já que não sabe onde enfiou seu celular. Cinco da manhã.

Marluce e sua mãe não conseguem mais dormir. Estão na sala, andando pra lá e pra cá. Marluce está preocupada com o marido, que ainda não deu sinal de vida, e tem compromisso importante daqui a pouco na capital.

— Não adianta a gente ficar aqui feito barata tonta, filha. Por que você não vai lá na chácara do Pablo, que é pegada da chácara do Seu Manoel, o genro da Dete, e vê se o Pablito, o filho dele, não te leva pra cidade? Aquele menino é prestativo.

Marluce vai bater na chácara do Plabo. Atende Guiomar, a mulher do Pablo.

— Aconteceu alguma coisa, Marluce?

— Nada não, Guiomar. Acho que a Dete morreu!

— A Dete? O que? Mas ela tomou café comigo ontem à tarde! Até me ditou uma receita de um bolinho de chuva.

— O Pablito já acordou?

— O Pablito viajou. Foi pra faculdade, esqueceu?

— Então pode deixar. Obrigada, Guiomar. Desculpa de alguma coisa.

Sai, deixando Guiomar falando sozinha. Volta para sua chácara, sem saber o que fazer para ter notícias do marido. Afinal, a cidade fica a minutos da chácara. Já era tempo do Dirceu ter ido e voltado. Com folga.

Dirceu consegue falar com a Funerária Thomaz, sendo atendido pelo próprio, que se prontifica em ajudá-lo nos trâmites para o velório e o enterro. Thomaz só pede para Dirceu levar o corpo até o cemitério, no final da rua da Santa Casa, onde existe uma sala especial para velórios. Dirceu não entende o pedido, afinal, funerária não é para vender caixão e transportar defuntos?

Não dão cinco minutos, aparece Pablo, o pai do Pablito, na chácara do Dirceu e da Marluce. Cabelos brancos, lisos, molhados, penteados para trás, perfumado, hálito Kolynos.

— Eu te levo até a cidade, Marluce.

— Mas não precisava se incomodar, Pablo. Tão cedo...

— Amigo é pra essas coisas. Vamos!

O dia está amanhecendo na cidade. Dirceu deixa o orelhão e encaminha-se até o carro, para levar o corpo ao cemitério, conforme combinado com o Tomaz. O pneu está murcho. Furado.

— Modesto! Levanta essa bunda daí e vem me ajudar a trocar essa merda! Será que não percebeu? Essa velha já é pesada...

As pessoas da cidade, já acordadas, descobrem o corpo dentro do carro. Aglomeram-se em volta. Dirceu, um olho no pneu, outro nos curiosos. “Ai, coitadinha...”, diz uma senhora magrinha, com uma baguete debaixo do braço. “O corpo já tá duro! Quero ver tirar isso aí de dentro do carro”, fala um outro, óculos com lentes fundo de garrafa, com cara de nojo.

— Caipirada xereta do caraio! – Explode Dirceu, suando em bicas.

Da chácara até a cidade não tem dez quilômetros. Pablo está a 120 por hora. Pablo é do tipo que gosta de dirigir com uma mão só; a outra, com o braço pra fora da janela. As vezes sem nenhuma, com as duas na nuca, como se estivesse se espreguiçando, como agora.

— Pablo, não dá pra ir mais devagar?

— Isso aqui é máquina, Marluce! Esse carro é bão. Freio ABS.

— Mas então segura na direção, Pablo. Pelo menos! Não quero morrer. Chega a Dete... que coisa horrível.

Pablo e Marluce chegam na cidade e vão direto para a Santa Casa. Não encontram Dirceu. Lá, são informados que a mulher chegara morta e que uma funerária já estava providenciando o enterro. Marluce sugere irem até Funerária do Japonês.

— O quê??? O Tomaz? Eu acabo com aquele desgraçado! Vamos para a polícia! Isso não se faz. Hoje é o meu dia! O papa-defundo do Tomaz me atravessou! Corno! Eu mato e enterro aquele fiadumaputa!

Nem Marluce nem Pablo sabiam que havia um acordo entre as duas únicas funerárias da cidade: dia par, a do Tomaz; dia ímpar, a do Japonês. Era dia 13.

Pedem desculpas e saem dali. “Acho que demos um tremendo de um fora, Pablo”. Sem querer, encontram com Dirceu na pracinha. Ele vinha da casa da Dete, a falecida. Estava com um saco plástico nas mãos, cheio de coisas dentro. Estressado.

— Mas o que foi agora, Dirceu? Tô preocupada...

— É a roupa da Dete, bem. A funerária pediu. É pra trocar ela. Vão fazer maquiagem, pentear o cabelo, essas coisa de mulher.

— E daí? Por que essa cara agora?

— Revirei todas as gavetas da casa dela. Não achei o sutiã. Não encontrei sutiã nenhum!

Marluce confere o saco plástico: saia, blusa, cinto, meia e até sapatos. Só não tinha mesmo o sutiã.

— Você acha que a Dete tá preocupada em ser enterrada sem sutiã, Dirceu? Deixa quieto...

O velório está armado. Os vizinhos da chácara, os amigos da cidade, vários parentes. Até o prefeito deu as caras. Cinco minutos. Quando ficou sabendo que a filha da falecida, mais genro e netos estavam no litoral, saiu de fininho. O padre, após breve discurso, coloca os presentes de mãos dadas, e começa a oração.

O celular de um dos sobrinhos-neto de Dete, Everaldo, toca alto, no meio da reza. Hino do Corinthians. É Faustinho, primo de Everaldo, neto da falecida. Está no litoral, passando trote no parente, querendo tirar uma, só porque está na praia e ele não. Milagre! Everaldo já corta a onda de Faustinho e dá a notícia: “Sua vó tá morta, velho! Desde a madrugada. Se liga, cabeção! Vem voando pra cá!”.

Dirceu se arrepende de ter se oferecido pra procurar um médico para o atestado de óbito, já que a falecida não tinha nenhum parente direto, ou seja, a filha ou o genro, para assumir o corpo. Seu compromisso na capital, pelo visto, já era.

Quatro horas depois, chega a família da falecida. A filha, de camiseta do Mickey, imensa, estampada no peito, calça de agasalho e sandálias havaianas; o genro, de bermuda jeans, camisa do clube da cidade, número 10, vermelha, desbotada, chinelos riders; o neto, adolescente, de camiseta regata, bermudão, descalço, com os pés ainda sujos de areia; a neta, jovencita, e uma amiga, ambas ainda de biquíni, apenas com saída de banho.

— Marluce, eu não agüento mais! Vou pra chácara.

— Pelo menos cumprimenta a família, bem.

— Depois eu falo com eles. Minha cabeça tá explodindo!

— Mas, Dirceu... – tenta convencê-lo a ficar um pouco mais, o amigo Pablo.

— Deixa ele, Pablo – diz Marluce. — Ele perdeu uma reunião importante de família em São Paulo. Parece que uma tia do Rio de Janeiro foi dessa pra melhor. A falecida, se eu ouvi direito, deixou uma grana preta pra sobrinhada, já que não tinha herdeiros, filhos.

— Mas que coisa...

— O Dirceu já estava cheio de remorso porque não foi no velório e no enterro da tia, coitado... Sempre odiou essas coisas. Morre de medo.

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