O negócio é dormir sem medo do outro dia. (Raul Seixas)

Camisas tricampeãs

A camiseta amarela, com a gola careca e a ponta da manga curta, verde, além do número 9 nas costas, na mesma cor, foi o primeiro presente da minha primeira namorada de São Paulo. Recém-chegado do interior, acostumado com os mimos das minas de lá – perfumes (Lancaster), meias (Lupo), lenços (Presidente), chocolates (Kopenhagen), drops (Dulcora, A Delícia que o Paladar Adora), balas (Piper) –, estranhei. Camisa de futebol de presente... E usada?

— É do Tostão.

— Tostão? Ah, obrigado...

Foi logo depois da Copa do México, 1970. A mãe da minha namorada ganhou duas: a 9, do Tostão, e a 10, do Pelé. Ela tinha mania de colecionar camisas de jogador de futebol. Guardava com orgulho uma vermelha, do Eusébio, o moçambicano que jogava por Portugal e que eliminou a seleção brasileira na primeira fase da Copa de 1966, na Inglaterra. Eusébio foi o artilheiro daquele Mundial, com 9 golos. Os mais jovens também conhecem o Eusébio. Ele sempre aparece na televisão, nas matérias da seleção de Portugal, dando entrevistas, com seu sotaque carregado. O cara batia um bolão. Chutava forte.

Minha namorada me contou que as camisas amarelas em questão eram do jogo Brasil e Inglaterra. Foi aquela partida em que o Tostão driblou toda a defesa inglesa, cruzou para o Pelé, que rolou para o Jairzinho, o Furacão da Copa, fazer o único gol da memorável porfia. Eu queria mesmo era a do Pelé, mas tudo bem a do Tostão. Sempre tive mais simpatia pelo Atlético MiGeiro (como diziam meus filhos maiores, quando pequenos, por causa do Atlético/MG), o Galo, e o ‘migeiro’ em questão era do Cruzeiro, apesar de cantar de galo na área adversária. Como seleção é seleção, deixa pra lá.

A camisa do ‘Mineirinho de Ouro’ não estava fedendo. Só suja. Imunda. Tinha até uma mancha de sangue logo acima do distintivo da CBD, no lado esquerdo do peito. Mandei lavar, com a recomendação de esfregar bem a nódoa. Minha namorada teve um chilique (nossa primeira briga), perguntou se eu estava louco ao mandar a camisa 9, do Tostão!, da seleção tricampeã do mundo!, para o tanque! Disse-me que a mãe dela guardara a do Pelé, sem lavar mesmo. Mais: mandara colocar a 10 em uma moldura, com vidro dos dois lados. E pendurado no teto da sala da casa dela, junto com inúmeras outras da sua coleção. Fiquei encafifado com aquilo. E se a camisa do ‘Craque Café’ estivesse mal-cheirosa? E o que poderia acontecer, se alguém resolvesse tirá-la dos vidros que a protegia, depois de um tempo?

Eu não via a hora de estrear a minha 9, da seleção canarinho, do Tusta.

Jogava bola duas vezes por semana, como centro-avante. Fazia meus gols, pode crer. Os companheiros, à princípio, não acreditaram tratar-se da camisa do consagrado craque mineiro, formado em Medicina. Depois, morreram de inveja. Teve um lá, que até me pediu a camisa emprestada, pra fazer bonito para a garota da qual ele estava afim, que era apaixonada pelo jogador. Ela, a garota, dizia que ele, o Tostão, tinha cara de menino carente e desprotegido, que precisava de colo. Não emprestei, lógico. Tinha certeza que ele, o amigo, jamais me devolveria relíquia tão preciosa, e nem ganharia a mina.

Além de jogar futebol com a 9 do Tostão, também a usava em eventos sociais, como churrascos com os amigos e almoços na casa de campo da sogra. Peguei gosto pela amarelinha.

Com o tempo, a gola começou a alargar, as mangas idem. O tecido foi ficando mais ralo, depois de tantas lavagens. E a do Pelé, intacta, suja, lá na sala da casa da mãe da minha namorada. Minha sogra não me olhava na cara havia meses.

Já não dava mais para desfilar com a camisa do Tostão por aí. Numa das últimas peladas com os amigos, ela rasgou no sovaco. O lance foi o seguinte: dei uma arrancada pela ponta, driblei dois zagueiros, um deles me puxou violentamente pela manga, driblei o goleiro, só não entrei com bola e tudo porque tive humildade em gol.

Mais algumas partidas e a camisa 9 da seleção ficou mais esburacada ainda. Não dava nem pra jogar bola. Virou camisa de pijama. Minha namorada teve mais outro chilique (nossa última briga).

Depois de uns meses rolando na cama, a camisa tricampeã mundial esgarçou-se de vez. Ficou imprestável.

— Joga fora não, seu Leonel! Isso aí dá um belo pano de chão. O tecido é do bom, olha isso. Passa a mão pro senhor ver.

E assim foi feito. A camisa 9 tricampeã mundial deu um verdadeiro show no tapete verde do chão da minha casa, por muito tempo.

Mais de trinta anos depois, leio no jornal que a camisa 10 do Pelé, de uma renomada colecionadora brasileira, usada pelo Rei na partida entre Brasil e Inglaterra, na Copa do Mundo de 1970, fora arrematada em um leilão, em Londres. Uma verdadeira fortuna.

Fiquei encafifado outra vez: será que o feliz ganhador vai ter a infeliz ideia de libertar a canarinha dos vidros que a protegeu durante tanto tempo?

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Leonel Prata

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